Enegrecer a docência universitária

FONTEEnviado para o Portal Geledés, por Ricardo Corrêa
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Um educador em um sistema de opressão é revolucionário ou opressor.

  ‒ Lerone Bennett Jr.

Peço licença para iniciar este texto com um dado bastante obsceno: o número de docentes negros na Universidade de São Paulo (USP) é na ordem de 2,3%. Ou seja, há 5.531 docentes na instituição, apenas 125 são negros. Essa disparidade é o exemplo indiscutível da existência do racismo institucional, e nos alerta a respeito das licenciaturas e pós-graduações direcionadas à  formação de professores. Nesse sentido, a pergunta que me deixa inquieto é a seguinte: será que os valores antirracistas estão presentes durante a formação dos estudantes?

A obscenidade não é exclusiva da USP. Eu tive aulas somente com dois professores negros em uma universidade federal. Os meus colegas que se formaram em instituições privadas me relataram experiências parecidas. Portanto, a desigualdade racial na docência universitária é generalizada e profunda. Ela se estabelece por meio de um racismo não verbalizado, porém, materializado pelos que decidem as políticas educacionais. Nos cursos universitários, os estudantes aprendem diferentes teorias para o exercício docente. Estudam didática, epistemologia da ciência e do ensino, fundamentos filosóficos e sociológicos, metodologias científicas, teorias de aprendizagem, mas, nenhum dos subsídios intelectuais são pensados nas particularidades do povo negro. A abordagem técnica desconsidera as relações políticas baseadas no racismo e o impacto gerado na aprendizagem dos estudantes negros.

O resultado é catastrófico. Os estudantes formados não têm base sólida para lidar com as questões raciais nas escolas e validam o senso comum. Aderem e reproduzem o mito da democracia racial, responsável pela perpetuação abstrata da harmonia e igualdade entre pessoas negras e brancas. Nada que encontramos na realidade concreta, apenas a existência de dissimulação e violência dos brancos, beneficiários de privilégios políticos, sociais e econômicos, contra os negros.

O currículo das instituições universitárias é repleto de intelectuais brancos, europeus e brasileiros. Se perguntarmos aos estudantes quem foi Paulo Freire, a maioria conhece, mas se quisermos saber quem o inspirou, raramente acharemos a resposta. Não por acaso, o importante educador construiu a sua teoria pedagógica com base nas lições de Amílcar Cabral, revolucionário africano e arquiteto da independência de Cabo Verde e Guiné-Bissau. Os estudantes deveriam estudar Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Kabengele Munanga, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, e outros negros que pensaram, e ainda pensam, o Brasil sob a ótica racial; sempre propondo mudanças para superação dos problemas resultantes do racismo. E digo mais, nem precisamos de muito esforço para compreender qual a razão da Lei  10.639, obrigando o ensino da história e cultura afro-brasileira, enfrentar obstáculos mesmo após vinte anos da promulgação.  É o racismo institucional impossibilitando a construção de uma sociedade que respeite a dignidade humana dos negros e indígenas.

A luta antirracista demanda de docentes revolucionários que objetivem ‒ prioritariamente ‒ edificar uma sociedade igualitária através da educação. Lidamos com estudantes que agirão neste mundo, e onde quer que estejam poderão se rebelar contra as condições racistas existentes.  Para tanto, depende de como a visão de mundo deles será construída. E nós temos parte nisso. Mas, até que essa reflexão seja inseparável da práxis docente, o caminho é enegrecer os quadros das instituições universitárias. Antes da formação e exercício profissional, os professores são pessoas negras que sobrevivem lutando contra o racismo. Eles não precisam de nenhuma determinação para colocar o assunto em discussão, é parte de suas vidas a compreensão da dinâmica da sociedade e o relacionamento da identidade individual e coletiva. Como professores, operarão a transformação intelectual ao ministrar aulas pautadas numa visão humanizada, e com as questões raciais presentes. Esse é o caminho para a redução significativa do ciclo racista, o mesmo citado pela antropóloga Lélia Gonzalez “[…] o sistema de ensino destila em termos de racismo: livros didáticos, atitudes dos professores em sala de aula e nos momentos de recreação apontam para um processo de lavagem cerebral de tal ordem que a criança que continua seus estudos e que por acaso chega ao ensino superior já não se reconhece mais como negra.”


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências

RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Org). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020


 ¹“História do racismo na USP coincide com a história da USP”, diz professor 

Disponível em: <https://www.geledes.org.br/historia-do-racismo-na-usp-coincide-com-a-historia-da-usp-diz-professor/>. Acesso em: 28 mai. 2023


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