Jazz como denúncia do racismo policial

Sobre Ku Klux Klan Police Department, de Christian Scott aTunde Adjuah

por Juan Duarte no Esquerda Diário

Escutar a banda do jovem trompetista negro Christian Scott aTunde Adjuah pode produzir de tudo, menos indiferença. Desde o começo, sua música te comove, faz emergir sensações viscerais, estremece por instantes, por momentos dá lugar a ritmos e melodias festivas e dionisíacas, e por momentos convoca tensões próprias da luta, épica. Ao mesmo tempo nos leva a paisagens sonoras e emocionais que podem também soar familiar aos amantes de certas bandas de rock como Joy Division ou Radiohead. Há algo nessa paisagem musical que, de alguma maneira, interpela ao oriente.

O ensaísta e ativista por direitos civis (entre um largo etc.) LeRoi Jones assinala, referindo-se ao jazz e sua crítica, que “a música dos negros é essencialmente a expressão de uma atitude, ou uma coleção de atitudes, acerca do mundo, e apenas secundariamente sobre o modo de fazer música. […] As notas de um solo de jazz, quando aparecem, existe como tal por razão que são musicais, mas apenas de maneira concomitante. Os uivos de Coltrane não são “musicais”, mas são música, e uma música muito comovente. Os gritos de Ornette Coleman são musicais apenas uma vez que se compreende a música que sua atitude emocional tenta criar. Essa atitude é real, e quiçá seja o aspecto mais singular e importante de sua música. ”

No caso do jovem trompetista de Nova Orleans e de sua jovem banda, esse mundo leva a marca da opressão, perseguição e violência policial dos negros afroamericanos nos Estados Unidos, tal como foram tirados de debaixo dos panos os novos casos de brutalidade policial racista na semana passada, e que tem dado lugar a movimentos de luta como #BlackLivesMatter.

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Christian Scott aTunde Adjuah, em seus 33 anos, já um músico, compositor e produtor de jazz consagrado. Dirige uma jovem banda de tremendos músicos (Elena Pinderhughes, flauta; Braxton Cook, sax alto; o requintado Lawrence Fields, piano; Dominic Minix, guitarra; Kris Funn, contrabaixo; e o alucinante Corey Fonville na bateria) com a qual roda arredor do mundo e com a que já tem gravado 8 discos. Faz parte de uma geração de novos músicos de jazz norte-americanos tão distintos como talentosos, dentre os quais podemos incluir Robert GlasperKamasi WashingtonEsperanza SpaldingThundercat e seu irmão Ronald Jr, entre outros, que compartilham um afã por ir mais além das fronteiras tradicionais do gênero, e próximo dos gêneros populares na juventude. O que significa, o que o leitor já deve ter adivinhado, que transitam pelo universo do hip hop. Nisto não há originalidade, já que este caminho recorreu Miles Davis em seu último momento, que longe de respeitar as fronteiras preestabelecidas, encontrou no hip hop uma estética e uma energia em ebulição desde uma juventude oprimida. Por certo, neste outro universo, há um planeta com um campo gravitacional musical comum enraizado nessa opressão racial ao redor do qual orbitam novas estrelas, se trata de Kendrik Lamar.

Mas no caso de aTunde Adjuah suas influências vão mais além, e constituem claramente sua música, a que ele mesmo chama, marcando essa amplitude, “stretch jazz”: “Estamos tratando de esticar – não substituir – as convenções rítmicas, melódicas e harmônicas do jazz para abarcar todas as formas, linguagens e culturas possíveis”, disse em um de seus discos. Assim, para além do leque notável de referências dentro do jazz, desde as mais obvias (Miles, Coltrane, Monk, etc.) até as do latin jazz, podemos vê-lo tocando com rappers e usando sua camiseta do Joy Division como um estandarte enquanto algo da obscuridade da banda britânica escapa de suas composições. Também o podemos encontrar, de repente, compartilhando o palco com Tom Yorke, Flea e sua banda Atoms For Peace, tocando “The eraser”. De fato, o vocalista de Radiohead é uma de suas referências musicais, compartilham uma amizade e sua própria versão do tema é estremecedora.

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Mas aquelas são apenas algumas fontes de inspiração do turbilhão interior que levanta o “stretch jazz” de aTunde Adhjuah quando o escutamos. A fonte, retomando a LeRoi Jones, deve ser buscada na relação do artisca com o mundo social ao qual está inserido. E neste caso, esse contexto se faz explicito, e encontramos uma busca consciente do jazz como uma expressão de denúncia, crítica e luta: “Uma das coisas que me incomoda de grande parte dos músicos é que sei que diariamente veem uma série de coisas fudidas acontecendo, e tem sentimentos sobres essas coisas. Mas ao invés de escrever sobre isso, você vê músicas em seus álbuns chamadas ‘Cadeira Vermelha’. Cara, estou pouco me fudendo para a cadeira vermelha… Quando a gente olhar para atrás daqui 30 anos e tentarmos ver o que tínhamos que dizer, ou como nos sentíamos sobre qualquer coisa, não saberemos, porque a música está impregnada de ‘cadeiras vermelhas’.

Na maioria das faixas, os títulos falam por si só: “Danziger”, por exemplo, faz referência aos disparos policiais da ponte Danziger seis dias depois de que o furacão Katrina arrasara Nova Orleans, nesse episódio dois afroamericanos morreram e outros quatro ficaram feridos, nenhum dos quais estavam armados nem havia cometido nenhum delito. Esta busca estética abarca toda a banda: uma vez, gravando “Dred Scott” – inspirada pela história do escravo que apelou por sua liberdade frente a suprema corte e perdeu, sofrendo uma morte cruel por tuberculose – algo faltava. “Haviamos gravado três ou quatro vezes – lembra Kris Funn, o baixista –. Ele parou toda a sessão e ficou sério pra caralho… praticamente nos deu uma biografia de 10 minutos sobre Dred Scott, e nos disse ‘agora coloquem-se em seu lugar, e ponham o instrumento em suas mãos. E como quer que se sintam, ponham isso em sua interpretação’. ”

As raízes escravocratas da opressão do povo afroamericano são obviamente parte do universo de Christian Scott aTunde Adjuah, e ele deixa expresso isso logo de cara: seguindo uma tradição bastante generalizada nos anos 60 e 70 (a lembrar por Muhammad Alí, ou mesmo LeRoi Jones, que adotou Amiri Baraka), agregou dois sobrenomes africanos ao original legal. “Aceito o fato de que ‘Scott’ seja parte de minha linhagem e de minha história – disse –, e não sou o tipo de pessoa que vê no nome algo inerentemente ruim, negativo ou malicioso somente porque este vem de alguém que comprou sua família. Mas no, por outro lado, também reconheço que minha história vai para além dos Estados Unidos.

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“Ku Klux Klan Police Department” (“Departamento de Polícia Ku Klux Klan”, como é chamada popularmente a polícia por seu racismo) abre o tremendo Yesterday You Said Tomorrow (Ontem você disse amanhã), seu oitavo disco, e o trompetista aproveita cada apresentação que pode para explicar a origem da canção (e trata de fazer isto com todas, a ponto de editar um disco com introduções a algumas de suas músicas). Em seguida transcrevemos seu relato e deixamos o leitor frente a frente com a música de Christian Scott aTunde Adjuah.

“Esta é uma canção que compus sobre um tema realmente sério. Quando compus a música, ela encontrou, na realidade, com o desprezo de muita gente nesta cultura em particular. Nós tocamos stretch music, que é como chamamos nossa música, mas basicamente é uma forma de jazz, e esta música foi composta a partir de uma experiência que tive em meu bairro de Nova Orleans com um grupo de oficiais da polícia. Me arrastaram uma noite, me apontaram suas armas sem nenhuma razão, disseram-me que me despisse e me deitasse no chão, e – supondo – que os deixassem fazer o que quisessem comigo. Não havia feito nada de mal, estava voltando para casa depois de uma apresentação com uma grande banda chamada Soulive, este carro da polícia seguiu o meu por 9 quadras, atiraram o veículo em cima de mim, e logo em seguida meu carro foi todo cercado, os chefes de polícia saem do carro e me põem o revolver na cabeça, me dizem para sair do carro, tirar a roupa e que me deite no chão. Não havia feito nada de mal, assim que lhes perguntei porque estavam me prendendo, dizem para me calar, pois eles eram meus chefes, a autoridade, e que eu iria fazer o que eles dissessem. A ele eu disse que eu pago meus impostos e que não os considero meus chefes, e que deveriam me dizer porque estavam me prendendo. […] O próximo que coisa ele me disse é que, se eu não obedecesse, minha mãe teria que me buscar no necrotério. Depois de um tempo apareceram oficiais de um escalão mais alto, assim, as 3 da manhã, quando haviam várias patrulhas apontando em minha direção. Finalmente me permitiram ir embora.

Voltei para casa de minha mãe em Nova Orleans, com uma mescla de sensações: enojado, mas também ferido. Pensando no porque haviam feito aquilo, vieram à minha mente um monte de insultos racistas que esses oficiais atiraram sobre mim […] Voltei para casa… E depois de passar uma noite terrível decidi que o mais inteligente que podia fazer era compor uma música que representava com precisão a gama de emoções que senti naquele momento, de modo a iluminar muita gente que, todavia, passam o mesmo. […] Eu nasci em Nova Orleans, e as coisas que vi e senti enquanto cresci contrastam com a brutalidade policial que vejo hoje. A primeira vez que escrevi a música, as pessoas me olhavam como se eu estive sendo sensacionalista, como se o que estava dizendo não fosse certo. […] E é louco porque a partir de outras culturas fazem você parecer como se todos aqui fossem parte de um elemento criminal, e esta seja a forma natural de nossas vidas, e nós merecemos o que nos acontece. Completamente falso. […] Vamos tocar esta canção convencidos de que esta nova geração tem a oportunidade de criar sua própria realidade… Se não começarmos agora, meus filhos ou seus filhos vão herdar esta situação. Então, esta última música é uma composição sobre o esmagador racismo contra os latinos, negros em especial afroamericanos que neste país especificamente distingue a polícia, e se chama ‘Ku Klux Klan Police Department’.”

Aqui poderá ir diretamente a introdução e a música. Abaixo o recital completo.

Tradução: Daniel Avec

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