O Aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Um Chamado à Igualdade para os Meninos Afrodescendentes

FONTECarolina Almeida
UN Photo/Jean-Marc Ferré UN Photo/Jean-Marc Ferré

Hoje, 10 de dezembro de 2024, celebramos o 76º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), um marco essencial para a garantia da dignidade, igualdade e liberdade de todas as pessoas. Adotada em 1948, a declaração reafirma, em seu Artigo 1º, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. No entanto, para as crianças afrodescendentes no Brasil, esses direitos fundamentais permanecem amplamente negados, vulnerabilizados por um sistema que perpetua desigualdades estruturais e marginaliza suas existências desde a infância.

Reconhecendo a urgência de tratar essas questões, Geledés – Instituto da Mulher Negra participou, em setembro de 2024, da reunião pré-sessional do Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas, em Genebra, um espaço estratégico e antecipado para influenciar a agenda do Comitê, destacando questões prioritárias e garantindo que as experiências e os desafios enfrentados por crianças afrodescendentes no Brasil fossem diretamente incorporados ao processo de revisão do Estado brasileiro. O objetivo foi claro: levar à discussão internacional a centralidade dos direitos das crianças afrodescendentes, destacando o impacto do racismo sistêmico, da pobreza intergeracional e da violência em suas trajetórias de vida.

Para trazer uma perspectiva direta e inquestionável sobre as vivências das crianças afrodescendentes no Brasil, João (nome fictício), um menino negro de 9 anos, paulistano, integrou a delegação de Geledés na reunião pré-sessional do Comitê dos Direitos da Criança. Sua presença foi fundamental para que os impactos do racismo sistêmico, muitas vezes invisibilizados, fossem apresentados em primeira pessoa, com a autenticidade e a força de quem vivencia essas realidades desde a infância. João representou não apenas sua história, mas também as de tantos outros meninos afrodescendentes cujas vozes têm sido silenciadas, destacando a importância de que o Comitê reconheça que as crianças não podem ser entendidas como um grupo homogêneo em um país cujas instituições foram historicamente estruturadas sobre bases raciais profundamente desiguais.

Preparar João para participar de um espaço tão formal e desafiador envolveu um esforço coordenado. Desde o início, mantivemos um diálogo produtivo e harmonioso com ele e seu pai, que o acompanhou durante toda a experiência. Para viabilizar a viagem, foi necessário providenciar passaportes brasileiros e realizar uma série de encontros preparatórios. Durante três sessões de perguntas e respostas, cada uma com a duração de 1h30, João foi introduzido à dinâmica do Comitê, que segue formato similar. Esses momentos foram cruciais para que ele se sentisse confiante e familiarizado tanto com a estrutura da reunião quanto com a representante de Geledés, que o acompanharia durante toda a viagem. Apesar de sua tenra idade, João demonstrou maturidade e coragem ao se preparar para compartilhar seus relatos em um ambiente que demandava grande engajamento emocional e concentração.

A participação de João na Reunião das Crianças (Children’s meeting) do Comitê, uma sessão especialmente dedicada a ouvir as vivências e demandas das crianças, foi um momento marcante e histórico. Na reunião, que contou com a presença de quatro adolescentes, João era o único menino negro menor de 10 anos. Ele relatou dois episódios de racismo que enfrentou em sua vida no contexto escolar. Sua narrativa, carregada de emoção e autenticidade, revelou com clareza as marcas profundas que o racismo deixa na infância, destacando como essas experiências impactam o bem-estar e o desenvolvimento das crianças afrodescendentes.

Contudo, o ambiente intenso e a carga emocional da reunião o afetaram significativamente, levando-o às lágrimas. Foi necessário retirá-lo da sala, uma possibilidade que já havíamos considerado. Ainda assim, seu depoimento foi recebido com extrema sensibilidade pelos peritos do Comitê, que destacaram a profundidade e a seriedade das questões apresentadas. Um dos peritos afirmou diretamente que o tema do racismo seria abordado de forma explícita pelo Comitê, reconhecendo que o relato de João não seria em vão. Esse posicionamento reforçou o compromisso do Comitê em dar visibilidade e atenção às graves consequências do racismo estrutural na vida das crianças negras.

A presença de João na reunião pré-sessional reforça, de maneira inquestionável, que o tema das crianças afrodescendentes deve ser tratado de forma representativa e proporcional à sua realidade no Brasil, recebendo a mesma importância que é atribuída a outros temas no debate sobre direitos infantis. Sua voz expôs como o racismo deixa marcas profundas em suas vítimas desde a mais precoce idade e, além de tudo, desafiou o Comitê a reconhecer que as experiências dos meninos afrodescendentes não podem mais ser relegadas à invisibilidade ao serem tratadas de formas generalistas ou secundárias.

Ao compartilhar sua história, João trouxe à tona a necessidade de ações concretas para assegurar que essas crianças tenham pleno acesso à dignidade, proteção e oportunidades de desenvolvimento, como garante a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O Artigo 7º da DUDH estabelece que “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei.” Aplicar esse princípio às crianças afrodescendentes significa garantir que suas necessidades e desafios sejam tratados com a mesma seriedade que qualquer outra questão que afete a infância, assegurando que as políticas públicas sejam tão inclusivas quanto a população que se propõem a atender.


Carolina Almeida é Assessora Internacional de Geledés – Instituto da Mulher Negra

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