Quilombo: A Arte da Memória Negra sobre Palmares

FONTEPor Danilo Luiz Marques, enviado para o Portal Geledés
Arquivo Pessoal

Uma das máximas do pensamento de Beatriz Nascimento é a de que os quilombos exerceram um papel fundamental na construção da consciência histórica da população africana e seus descendentes no Brasil. Assim, as memórias sobre as experiências quilombolas foram constantes durante e após o período da escravidão. Advindos de tradicionais culturas orais, os povos africanos e seus descendentes encontraram possibilidades de memorização corporal. Suas expressões e formas de ser, viver e relacionar-se foram reatualizadas e incorporadas em diversas práticas culturais. Essas expressões de comunicação são locais privilegiados para o entendimento do processo de transformação histórico-social das culturas africanas no Brasil e em outras regiões da América e do Caribe.

A manifestação de temática quilombola surgida nas Alagoas de fins do século XVIII, o quilombo, é uma delas. Realizada em cidades e zonas rurais em tempos de festas natalinas e nas celebrações de irmandades como a de Nossa Senhora do Rosário, era apresentada por populares e fazia uma representação da Guerra de Palmares, em que se travava uma batalha entre negros e tropas antiquilombos acompanhadas de indígenas. O quilombo se configura como uma arte da memória negra sobre Palmares que mantinha viva entre os africanos e seus descendentes a luta palmarina pela liberdade.

Correspondência publicada no jornal O Orbe, pedindo providências contra a realização do Quilombo no bairro de Bebedouro (Maceió-AL), 1882. (Foto: Jornal O Orbe (06/12/1882) – Coleção Hemeroteca Nacional.)

O quilombo tem sua matriz cultural na tradição africana e indígena existente em algumas regiões de Alagoas e Pernambuco, remetendo ao tema da resistência escrava no Brasil. Na primeira metade do século XIX, era encenado nas cidades de Alagoas (atual Marechal Deodoro) e Vila da Imperatriz (atual União dos Palmares), em dias santos ou nas proximidades do Natal, pois, segundo João José Reis, os escravizados e libertos “aproveitavam as celebrações do calendário cultural dos senhores para praticarem tradições culturais, entre as quais, a tradição, frequentemente reinventada, de se organizarem segundo a origem étnica”. Em Maceió, capital de Alagoas, também existem registros da realização do quilombo. O jornal O Constitucional publicou, em 23 de julho de 1851, que se costumava “fazer nesta [região] uma brincadeira tosca chamada os quilombos que este ano se fez também nesta capital [Maceió]”.

Dividido em três momentos, o quilombo se iniciava com a representação de uma grande paliçada (fileiras de estacas fincadas no solo, ligados entre si, para servir de defesa contra ataques de inimigos) simbolizando os quilombos. Fazia-se um cercado de palha ou paliçada, enfeitado com diversas árvores transplantadas, pés de banana, mamoeiros etc. Construía-se no meio desse cercado, que representava o mocambo, dois tronos feitos de palmas de palmeiras ouricuri e folhas, sendo o da esquerda para o rei e o da direita para a rainha. Feito o arraial, o grupo negro começava a agir como se estivesse em um quilombo, saqueando as fazendas ou casas e enchendo os mocambos de coisas roubadas, como animais, utensílios, mantimentos e móveis. Posteriormente, a venda desses produtos era feita aos próprios donos.

A realização do quilombo se iniciava ao amanhecer, geralmente em praças públicas, com negros vestidos de algodão azul dançando ao som de adufos, mulungus, pandeiros e ganzás, que cantavam: “Folga negro / Branco não vem cá / Se vier / O diabo há de levar”. Os versos exprimiam os sentimentos de liberdade dos escravizados fugidos dos engenhos de açúcar, que se estabeleceram nos vários quilombos espalhados por Alagoas e Pernambuco.

Cordão de Negros, Quilombo de Bebedouro (Maceió-AL), 1952. (Fonte: BRANDÃO, Theo. Quilombo. Rio de Janeiro: Funarte, 1978.)

O quilombo possuía uma característica comum nas manifestações culturais afro-brasileiras: a interação e participação do público. A dança ou batuque consistia em um coco solto ou sem parelhas (quando ocorre a mudança de casais). Até o amanhecer, comia-se no rancho tudo o que se cozinhava numa panelada: carne de boi com osso de tutano, verduras, charques, temperos, com pirão escaldado ou coberto com caldo da panelada. Esse primeiro momento incluía também uma passeata pelas ruas das cidades ou pelo local onde o quilombo era realizado.

Na segunda parte, apareciam os espiões dos indígenas, procurando conhecer as posições dos negros inimigos. Enquanto os negros se preparavam para a defesa, surgiam os soldados, que representavam as tropas do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, incumbidos da missão de destruir Palmares, acompanhados por indígenas. Esses cercavam o quilombo e começavam a resgatar as coisas roubadas. Travava-se, então, uma luta na praça ou na rua em frente ao quilombo, e depois de muitos combates, retiradas simuladas e assaltos, o rei dos caboclos acabava capturando o rei dos negros e apossando-se da rainha.

A sequência da manifestação cultural se dava com a matança dos negros e a destruição do quilombo, sendo os sobreviventes capturados e colocados em condição de escravizados. Os negros, batidos pelos caboclos, recuavam para o centro do quilombo, o qual era cercado e invadido. A festa se encerrava com a venda dos negros e a entrega da rainha a um dos maiores proprietários da vila, que para fazer figura tinha de recompensar os vencedores.

Nei Lopes entende o quilombo, assim como outras manifestações de arte “afro-brasileira” (Moçambique e Maculelê, por exemplo), como preservadores de lembranças passadas dos antigos reinos bantus e seus soberanos, constituindo se como “bailados guerreiros”, memórias que certamente são dos muitos combates travados pelos bantos na África Central e no Brasil. Para um melhor entendimento acerca dessa manifestação cultural, é importante atentar para as figuras dos reis e rainhas negros. Sua eleição e outras celebrações ritualísticas foram constantes em regiões do Caribe e das Américas onde africanos e seus descendentes enfrentaram o impacto da escravidão. Exibia-se uma multiplicidade ritual e formal, verificada em elementos musicais e aspectos cênicos, coreográficos, literários etc.

A coroação de reis e rainhas negros em quase todo o continente americano e no Caribe ao longo dos séculos em que perdurou a instituição escrava salienta a sua importância para o entendimento do mundo dos africanos e seus descendentes na diáspora. Eles desenvolviam múltiplas atividades: função de liderança em conflitos e rebeliões, organização de festejos e aconselhamentos espirituais, tecendo memórias africanas reinventadas no mundo Atlântico. A alusão à existência de um rei e uma rainha dos aquilombados é um elo importante para a compreensão do significado político dessa manifestação cultural surgida nos tempos coloniais e que reavivava na memória de seus participantes o significado político e cultural da resistência palmarina.

Rei dos Negros. Quilombo de Bebedouro (Maceió-AL), 1952. (Fonte: BRANDÃO, Theo. Quilombo. Rio de Janeiro: Funarte, 1978.)

O quilombo mantinha viva a memória da Guerra de Palmares e apontava para o caminho da fuga como a ruptura e a rebelião temida pelos senhores de escravizados. Diante disso, as autoridades consideraram necessário criar uma legislação que reprimisse a realização dessa manifestação cultural de temática quilombola. Na cidade de Alagoas, por exemplo, o código de posturas municipais proibiu em 11 de julho de 1839 o “bárbaro e imoral espetáculo denominado quilombo”. Os contraventores sofreriam pena de oito dias de prisão, além de uma multa.

As manifestações culturais dos africanos e seus descendentes na diáspora foram qualificadas, muitas vezes, como “bárbaros costumes”, que deveriam ser combatidos e exterminados, ou no mínimo segregados, para assim se evitar que adentrassem em outros setores da sociedade. Nos jornais alagoanos das décadas de 1870-1880, nota-se uma série de matérias denunciando os ensaios e a organização de manifestações culturais de matrizes africanas, principalmente na cidade de Maceió. Em 10 de fevereiro de 1877, por exemplo, o jornal O Telegrapho publicou algumas linhas sobre o quilombo:

“Teve lugar véspera da festa da Sra. da Graça este estúpido e antiquário folguedo próprio de ser representado nos cercados de engenhos ou em pequenos lugarejos onde a civilização ainda não tenha aberto os olhos do povo.

Admiramos que o Sr. Dr. Chefe de polícia, tão enérgico e prevenido, tivesse dado licença para tão descomunal folgança que, com quanto não causasse grande danos com tudo deu lugar a que os tais quilombolas garantidos pela ordem policial, na véspera da festa (por graça) fizessem pilhagem e no dia levasse o povo de trote, a ponto de ficar o Pedro Barraqueiro de papo para o ar servindo de capacho aos borbotões de povo que fugia dos tais pretinhos do quilombo.

É estúpido, repetimos, e até vergonhoso que ainda hoje se reproduzam cenas dos tempos coloniais que existiam os almotacés, ouvidores e juízes de fora. Esperamos que seja esta a última vez que tal divertimento tenha lugar.”

Para controlar manifestações culturais como o quilombo, realizado em ruas e praças, tornava-se necessário recorrer à polícia. Dessa forma, eram comuns os pedidos de reforço no policiamento em tempos festivos. Mesmo assim, apesar das proibições a que foram submetidas através dos tempos, as manifestações culturais de matrizes africanas se mostraram resistentes e persistentes.

Muitos registos de memórias se fizeram presentes em inúmeras formas de oralidade mantidas ou constituídas pelos povos africanos e seus descendentes no Novo Mundo. Nesse sentido, pode-se dizer que a prática cultural do quilombo se configurou como uma arte da memória negra sobre Palmares. A diáspora africana trouxe consigo indivíduos forjados em culturas orais que vivenciaram memórias corporais, algo que não lhes foi expropriado. Dessa forma, refizeram-se, colorindo, ritmando e reinventando os universos culturais brasileiros. Apesar da escravidão, os escravizados não se deixaram dominar pelo medo. Em seus batuques, suas danças e canções, propuseram significados de liberdade − como na manifestação cultural quilombo − e assustaram seus opressores. Os gestos movidos pelas musicalidades e danças são, para os grupos negros da diáspora, formas de saber que se expressam como arte, comunicação e pensamento em contraposição a discursos e políticas de marcas ocidentais. Na música, na teatralidade, na dança e na oralidade da prática cultural quilombo, está uma memória de Palmares que faz frente às narrativas factuais da história.

Assista ao vídeo do historiador Danilo Marques no Acervo Cultne sobre este artigo:

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Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais).

Danilo Luiz Marques
Graduado em História pela UFAL, mestre e doutor em História Social pela PUC- SP, com período de estágio sanduíche na Michigan State University (MSU), nos EUA. Professor de História do Brasil Colônia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: danilohis.ufal@gmail.com.br. Instagram: @daniloluizmarques.
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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