Relações afrocentradas são aquelas que envolvem escolha de e entre parceiros negros, podendo ser de diferentes gêneros e orientações sexuais. A atualidade da discussão sobre o tema traz a existência de um preterimento sobre os símbolos sociais que alguns corpos negros representam. Hoje se fala de solidão afetiva também entre mulheres negras trans, mulheres negras lésbicas e também homens negros gays. O amor que designa relações românticas e afetivas têm cor sim. Um dos trabalhos mais significativos sobre isso é o de Claudete Alvez no seu livro “Virou Regra”, no qual ela apresenta uma reflexão sobre a solidão da mulher negra e a sua subjetividade face ao preterimento pelo homem negro.
Texto: Stephanie Ribeiro, no Alma Preta
É preciso deixar evidente que tal solidão se aplica a relações heteroafetivas e homoafetivas, e que muitas das relações homoafetivas acabam as vezes repetindo padrões impostos onde o machismo está sendo reproduzido mesmo que seja uma relação entre duas mulheres, assim como o racismo. Deste modo, a solidão também se faz presente.
A questão é que não existe uma resposta única e simples a esse preterimento.
Eu acredito que, invariavelmente, a resposta está muito mais relacionada ao fato da mulher negra não ser vista como sujeito, do que simplesmente ela se unir a alguém. Ou seja, não poder exercer o seu direito de fazer escolhas e gozar de uma vida digna e saudável, em plena sociedade contemporânea.
A realidade que vivemos hoje nos faz ter de lidar com alguns fatos. Pois, enquanto de um lado, mulheres negras mães, gordas e de pele escura não são vistas como ideais para relacionamentos, e sofrem o celibato definitivo; por outro lado, mulheres negras de pele mais clara, magras e jovens até são “escolhidas” para serem parceiras. Porém, precisamos ir além do estar ou não com alguém. O que não debatemos, além dessas questões, por exemplo, é que as relações dessas moças não é plena e saudável na maioria das vezes, gerando a situação chamada de Solidão a dois – que também não contribui para realização dessa mulher negra como sujeito.
O ponto central é que, dentro de tantas solidões e discussões, hoje estamos vivendo um contexto de romantização dos relacionamentos afrocentrados. Contexto no qual não se debate que, por trás dessa lógica citada acima, está sendo mantida uma visão colonizadora que dividia as negras entre aquelas que serviam apenas para o trabalho braçal e pesado, e as que poderiam até circular pela Casa Grande, desempenhando trabalhos domésticos e sendo diariamente vítimas de abuso.
O que a escravidão fez com as relações afetivas é muito mais complexo do que acreditamos. O imaginário de muitos de nós reproduz a visão colonizadora e racista. Exemplo: para muitos homens negros ter uma mulher companheira branca é uma forma de mostrar o poder para o homem branco. Nessa história, mulheres e negros se tornam mais objetos das opressões que recaem sobre seus corpos, do que donos de suas escolhas.
Homens negros se relacionando com mulheres negras não significa que se esforçaram para desconstruir padrões sociais que foram impostos na sua construção de masculinidade numa sociedade machista e racista. Tirar o racismo do debate é agir como se ele não fosse introjetado e estrutural.
Sendo assim, simplesmente achar que negros devem se unir com negros e que isso é a perfeição, é não entender as subjetividades que envolvem um relacionamento e os indivíduos envolvidos nele. Esse acaba sendo um pensamento limitado, contudo muito difundido sem seus reais questionamentos, e no fundo resulta em relações trágicas. O problema é que o relacionamento afrocentrado é colocado como um conto de fadas da “Disney preta”, que garante finais felizes para pessoas que viveram até então relações em sua maioria desastrosas e de preterimento.
Essa ótica é fora da realidade e embasa a manutenção de relações abusivas entre negros. Relações afrocentradas são complexas, pois estamos falando de indivíduos que tem vivências, buscas, respostas diferentes ao que é cobrado socialmente. Por fim, estamos falando de pessoas diversas e não bonecos que se unem.
Sendo assim, relacionamento nunca é fácil, muito menos entre negros que têm sua subjetividade e pensamento individual negados numa sociedade estruturada de forma racista e excludente e que passam por processos ou não, de construção de uma identidade negra.
Foi tirado o direito de amar entre nós negros. Foi tirado o direito de nos amar entre negros. Isso acontece a partir do momento que era mais importante sobreviver na sociedade escravista do que ser.
E está sendo tirada a necessidade de se questionar relações negras, quando negamos que, assim como outras relações, elas não são simples.
Relacionamento não é uma foto bonita no Instagram ou Facebook. É dia-a-dia, discussão, divergência, carinho, conversa, amor. Inclusive, para que exista relacionamentos fora do conto de fadas, temos que parar de acreditar que questões de classe, meio social, acadêmicas e econômicas não interferem na construção de uma relação.
No fundo, apenas na Disney existem inúmeros relacionamentos entre pessoas de realidades extremamente distantes. No mundo real, isso é exceção. Por isso não podemos lidar como se fosse regra. Portanto não existe sentido na frase: mulheres negras “escolhem” demais.
Primeiro que escolher parte do pressuposto que você goza socialmente da posição de sujeito e na nossa sociedade essa pode ser a construção de uma vida toda para uma mulher negra, com a possibilidade dela nunca chegar. E segundo que, quando mulheres negras estudam, se auto sustentam, têm interesses diversos, etc.
Ao contrário do que acontece com uma mulher branca, ela é vista com menor apreço por homens. Pois ainda temos internalizada a ideia da dependência associada ao amor e que uma mulher negra como sendo a “base social” estar acima de você, é ofensivo. O fato é que isso se opõe à construção social imposta às negras. O ser forte não dialoga com o que querem numa mulher, mas o que querem numa mulher não dialoga com o que a sociedade impõe que sejamos. Por fim, acabamos não tendo o direito de ser o que quisermos e de ver pessoas lidando naturalmente e nos amando por isso.
Pois isso acredito que a mulher negra deve gozar sim da liberdade de escolher a relação que lhe faz bem, plena e que se mostra saudável, num contexto racista, machista, elitista, onde ela representa o fim de uma pirâmide social. Isto posto não dá pra desconsiderar que a escolha acaba que sendo um privilégio ainda raro entre nós. Se uma mulher negra puder escolher, deixe que ela escolha o que é melhor para ela. Na maioria das vezes, acabamos inclusive por questões de autoestima e medo da solidão, aceitando narrativas opostas as nossas, agressivas, machistas e muitas vezes até racistas. No fim, voltamos para a ideia de que até mesmo as que se relacionam, continuam solitária.
Homens negros, ao invés de ficarem criticando negras que tocam nessas questões, ou que namoram pessoas brancas, deveriam estar debatendo como a construção da masculinidade embutida neles é devastadora não só para si, mas para quem está ao redor, para o coletivo que tanto prezam. Vivemos num mundo onde:
– Homens acham que devem demostrar poder sobre a companheira, usando a força física e assédio moral para isso;
– Homens desmerecem as conquistas da parceira e não apoiam suas decisões nunca;
– Homens não têm abertura para as questões da companheira;
– Homens limitam o pensamento, forma de agir e até de vestir da parceira;
– Homens fazem de suas companheiras a fonte de exploração material e mão de obra;
– Homens abandonam seus filhos, ou não entendem a necessidade da participação efetiva e real na criação desses, e isso não se dá pelo pagamento da pensão em dia;
– Homens não escutam;
– Homens não falam o que sentem;
– Homens não fazem carinho;
– Homens não sabem nem dar prazer;
– Homens não são parceiros e nem companheiros.
Infelizmente essa é a narrativa comum, e não a exceção, para homens independente da sua identidade racial. Homens negros não só reproduzem tudo isso, por terem sido educados para acreditarem que ser homem é isso, como descontam e reproduzem no outro corpo negro da relação, o que o racismo faz com eles. É triste e lamentável ver mulheres negras em relações afrocentradas onde as parceiras simplesmente não falam, quando participam de um evento coletivo.
A questão é que: dentro de relações onde os envolvidos são negros, tais atitudes devem ser superadas antes de colocarmos o amor afrocentrado como um ideal a ser alcançado.
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Relações afrocentradas significam para mim ter um parceiro capaz de entender, porque também sente na pele, a forma como o racismo me afeta e ser um ponto de apoio não só para lidar com isso, como para ajudar a buscar respostas para isso. O racismo não afeta só os campos que geralmente citamos, ele não fica só evidente quando falamos de genocídio da população negra. Ele interfere na nossa construção social e de caráter.
A forma como nos colocamos para o mundo enquanto negros está mais ligada ao racismo do que acreditamos. Ao contrário do que se pensa, não é fácil olhar para o parceiro e admitir que a polícia te intercepta sempre que te vê na rua. Mas relações também são para coisas banais que não envolvem racismo. Relações são múltiplas e devem ser vividas sempre que fazem bem para os envolvidos. Relações afrocentradas não são uma fábrica de crianças negras, como alguns colocam.
Ou seja, precisamos urgentemente falar de machismo e desconstruir uma romantização por trás de algumas ideias postas. Homens negros que não conseguem compreender que, se é complexo para eles viverem numa sociedade racista, imagina para nós negras que temos em nosso diante duas ou mais opressões, não servem na minha opinião para terem uma relação “afrocentrada”.
Não estou resumindo homens negros a opressores frios, mas a pessoas que querem realmente viver uma relação nesses moldes precisam se esforçar e se abrir para novas narrativas. Esse é um texto de uma mulher negra para homens negros, pedindo que eles parem de reproduzir o ideal de homem que acreditam ser melhor e se abram para construção de relacionamentos saudáveis. E isso requer esforço da parte deles de debater masculinidade e para vencer inclusive o ideal racista.
Não romantizo o que é ser mulher negra no Brasil. É triste, é duro, somos obrigadas a sermos fortes, mas mesmo assim temos uma sucessão de mulheres incrivelmente fantásticas, que construíram narrativas que hoje embasam todas nós. Por isso também não aceito como somos punidas entre quatro paredes pelos que nos chamam de companheiras na hora da luta negra. Nós somos a base, a força e as protagonistas de muitas lutas, e isso deve ser reconhecido.
E é por isso que estou agora dizendo: ou aceitam isso, ou viveremos a solidão como escolha. Algumas já sabem que ser plena não é ter um companheiro, e que pode ser muito bom sim ter alguém, se isso for saudável e construtivo.
Paremos de dizer coisas absurdas como: “Rihanna e Chris Brown deveriam voltar, pois são lindos juntos”. Afinal um dos “lindos” dessa história é um agressor machista. As inúmeras Rihannas merecem relações de amor que não as destruam, merecem ser sozinhas se quiserem e não por imposição, merecem fazer escolhas e serem vistas como sujeitas plenas, merecem ser vistas como pessoas e não como barrigas reprodutoras de crianças negras. Merecem ser vistas, apenas. Desejar isso para mulheres negras é o que devemos fazer.
Relações afrocetradas são, antes de tudo, relações afetivas e também interferem na nossa construção social e de caráter. Muitas mulheres negras precisam ter laços afetivos seguros, fortes e que lhes façam bem. Essa é uma resposta ao preterimento, e isso está com ela, com quem realmente a ama, e com quem ela quer ter próximo. Isso pode ser um namoro, uma amizade e até mesmo uma relação familiar. Ou tudo isso. É uma revolução muito grande uma mulher negra sendo amada. Precisamos entender mais o grande significado disso, antes de solucionar de forma tão simples questões tão complexas.