O advogado Hédio Silva Jr. aponta racismo na tentativa de proibição do abate de animais em rituais religiosos. Miram nas religiões afro, afirma
Por Sergio Lirio, da Carta Capital
Independentemente do resultado da votação no Supremo Tribunal Federal, que adiou a decisão após um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, o advogado Hédio Silva Jr. marcou de forma definitiva o julgamento a respeito da permissão do abate de animais em rituais religiosos.
Sua exposição no plenário da corte ironizou os defensores da proibição, “calçados com sapatos de couro”, traçou um histórico dos abates em diversas religiões e alertou para o racismo da ação movida pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, contrário a uma lei estadual que deixava explícita a liberdade dos sacrifícios nos ritos afro-brasileiros.
Segundo ele, rituais semelhantes praticados por judeus e muçulmanos não mobilizam o Estado da mesma forma. Nem outros problemas graves. “Nunca vi uma instituição pública se preocupar com o genocídio de jovens negros na periferia”, afirma o advogado. “A vida de uma galinha de macumba vale mais”.
CartaCapital: Por que a restrição ao abate de animais em rituais religiosos seria uma expressão de racismo?
Hédio Silva Jr.: Esse mesmo dogma está previsto em vários preceitos bíblicos, especialmente no Velho Testamento. É dietético e litúrgico no judaísmo. O kaparot é um ritual em que se utiliza o abate por enlevo espiritual do fiel e é muito similar às cerimônias do candomblé e da umbanda. Há ainda os rituais para alimentação. No caso dos judeus, a comida kosher. Em São Paulo, se não estou enganado, existem dois grandes produtores desse tipo de alimentação, rigorosamente preparada de acordo com preceitos religiosos.
CC: Os muçulmanos também, certo?
HSJ: Os muçulmanos tem um ritual chamado Eid al-Adha, cerimônia que acontece 10 dias após a hajj, a visita anual a Meca. E eles abatem animais de grande porte com os mesmos fins, de enlevo espiritual, tão somente. Além disso, há o mercado de certificação halal. Cerca de 30% da carne bovina e 40% das aves exportadas pelo Brasil se destinam aos países muçulmanos. E os animais são abatidos aqui há décadas, em frigoríficos.
Entretanto, a crítica, a ressalva, a repulsa, se destina exclusivamente ao abate praticado por religiões de matriz africana.
Por isso, afirmei, na sessão do Supremo, que a vida de uma galinha de macumba é mais importante que a de jovens negros.
CC: De que maneira?
HSJ: Nunca vi instituições jurídicas afirmando que o genocídio cometido no Brasil contra os jovens negros é evitável. O Estado, como garantidor da integridade física e psíquica dos indivíduos, deveria ser acionado para que essas mortes fossem evitadas ou, ao menos, diminuíssem. Há uma omissão total do Estado e uma naturalização desse fenômeno, como se fosse normal jovens negros serem assassinados nas periferias. Por outro lado, assistimos a uma enorme comoção por causa de meia dúzia de galinhas abatidas para fins religiosos.
CC: Há quem diga que os rituais judaicos e muçulmanos visam apenas a alimentação.
HSJ: Não é verdade. Os dois também têm rituais para fins exclusivamente litúrgicos. No caso das religiões afro-brasileiras, o abate tem dupla finalidade. O animal é consumido depois dos rituais e, em geral, compartilhado com as comunidades que vivem no entorno dos terreiros.
Assista na íntegra a exposição de Hédio Silva Jr. no STF:
CC: O pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes foi uma derrota ou uma vitória?
HSJ: Uma vitória parcial e provisória importantíssima. O relator, Marco Aurélio Mello, entendeu que o dispositivo da lei estadual deve ser modulado de acordo com a Constituição. E fui positivamente surpreendido pelo voto do ministro Edson Fachin. Em razão da discriminação estrutural, afirmou Fachin, a lei estadual deveria ressalvar o direito de abate nas religiões de matriz africana. Justamente por causa da intolerância.
CC: O que senhor espera da conclusão desse julgamento no STF?
HSJ: Os ministros têm uma preocupação com o que eles chamam de confissões minoritárias. Sou advogado dos Adventistas do Sétimo Dia em um outro julgamento, que deve ser colocado em pauta em breve, sobre a guarda do sábado. O nível de proteção dado às confissões e aos grupos de convicção filosófica é importante para a Corte. A Constituição protege tanto a crença quanto a descrença. E cataloga a descrença como convicção filosófica, caso do ateísmo ou do agnosticismo. A forma como o Estado trata esses segmentos é essencial, um termômetro da efetividade das noções de democracia e de Estado laico.
CC: O senhor enxerga um aumento do preconceito contra as religiões de matriz africana nos últimos anos? Se sim, qual a causa?
HJS: Mudou a forma de expressão. Antes da Constituição republicana, heresia era crime, zombar de Deus também, punidos com pena de morte. A profissão de outras crenças era crime. Em 1890, o Código Penal punia a feitiçaria e o curandeirismo. Este último está no código até hoje. Criminalizou-se a capoeira e ela foi equiparada à vadiagem, após o fim da escravidão, como quem tivesse trabalhado durante quatro séculos de repente virasse vagabundo. A capoeira continuou a ser classificada como crime até 1940. Até a década de 70, as delegacias de costume tinham dois alvos: as religiões de matriz africana e a prostituição.
CC: O que mudou?
HSJ: Atualmente existe uma leve diminuição da repressão do Estado, mas cresce a propagação do ódio religioso, inclusive pelos meios de comunicação. Recentemente vencemos uma ação contra uma grande emissora de tevê por espalhar o ódio. Um relatório oficial de 2017 relata que a cada 15 horas um templo religioso, em geral das religiões afro-brasileiras, sofre algum tipo de ataque. Ele deriva da lógica de certos discursos, em especial de segmentos neopentecostais, que construíram suas organizações depreciando outras. Para capturar o medo, identificam o demônio como algo presente no cotidiano e associam o mal às religiões de matriz africana. Esse discurso é um ovo da serpente. A intolerância cresce e vai piorar.