A primeira surpresa na autobiografia da educadora Neca Setubal, “Minha escolha pela ação social – Sobre legados, territórios e democracia” (Ed. Tinta-da-China Brasil), lançada neste mês, vem logo no prefácio – escrito por Sueli Carneiro. No parágrafo que abre o livro, a filósofa e fundadora do Geledés, uma das maiores vozes do feminismo negro no Brasil, reconhece a improbabilidade da amizade entre ela e a socióloga, filha do fundador do banco Itaú, uma das famílias mais ricas do país.
“Brancos da elite são seres fantasmagóricos para nós, negros, quase invisíveis para nós quanto costumamos ser para eles”, escreve Carneiro. “Não são pessoas, muito menos amigos; são categorias, conceitos, noções: hegemonia, opressão expropriação, violência, tudo ao que estão associados em relação à nossa história. Como resgatar nossa humanidade comum com esse histórico?”
A própria Neca faz questão de frisar: não quer ser confundida com “super-ricos que fazem caridade assistencialista” ou resumida a “herdeira”. Doutora em Psicologia da Educação pela PUC-SP, é fundadora da Fundação Tide Setubal, de 2006, e do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), criado em 1987. Também foi coordenadora de Educação para América Larina e Caribe pelo Unicef.
“Óbvio que sou de uma família empresária, tenho muito dinheiro, mas não sou bilionária, como costuma sair na imprensa. E por que não sou? Porque fiz várias grandes doações ao longo da minha vida. Mas tudo bem, claro que sou uma pessoa que tem muitos recursos, da elite econômica, não estou negando isso”, afirma Neca a Marie Claire, na sede da Fundação Tide Setubal, no Itaim Bibi, bairro de São Paulo.
Na entrevista abaixo, a educadora fala de episódios curiosos que relata no livro, como a ida à missa de sétimo dia de Vladimir Herzog, jornalista morto pela ditadura militar em 1975, e a relação com o pai, na época prefeito biônico de São Paulo, filiado à Arena, partido de apoio ao regime. Neca ainda comenta o cenário político atual, mostra indignação contra a tramitação do projeto de lei que equipara a interrupção da gravidez acima de 22 semanas a homícidio e defende maior taxação das elites econômicas: “Não basta educação e nem filantropia, tudo isso é importante, mas não vai mudar as desigualdades no país”.
MARIE CLAIRE O que te fez escrever esse livro agora? É uma tentativa de se diferenciar do que você chama de “super ricos que fazem caridade”?
NECA SETUBAL Foram alguns motivadores. Pessoas mais jovens me procuram, querendo abrir uma ONG, que trabalham na educação, e me dizem que se inspiraram e querem me ouvir. Então contar a minha história pode ser uma referência. Outro motivador é quase uma resposta ao que ouvi a vida inteira: que não precisava estar aqui, podia estar viajando, fazendo compras. Mas fui educada para trabalhar, fazer a diferença e contribuir. Não foi pra passar a vida a passeio.
Venho de uma família empresária, mas não quero ter esse rótulo de que os super-ricos não fazem nada, só estão na vida, socialites, querendo estar em festas. Uma parcela é assim, mas não sou a única pessoa da elite que atua. Fica o rótulo de que só existe uma elite muito descompromissada com o país. É verdade, sim, mas não é toda a elite. Então, o livro também é uma resposta para isso. Muitas matérias gostam de me colocar como bilionária. Não sou bilionária, embora isso fortaleça a manchete. Óbvio que sou de uma família empresária, tenho muito dinheiro, mas não sou bilionária. Já saí na lista da Forbes e contestei. E por que não sou? Porque fiz várias grandes doações ao longo da minha vida. Mas tudo bem, claro que sou uma pessoa que tem muitos recursos, da elite econômica, não estou negando isso.
MC Algo que me surpreendeu no livro foi o prefácio da Sueli Carneiro. Como aconteceu essa amizade?
NS Desde que criei a fundação Tide Setubal, em 2006, sempre tive o princípio de acreditar na potência da periferia, onde trabalhamos. Desde o início muitos dos colaboradores da fundação eram oriundos da periferia. Tivemos muitas pessoas negras fazendo parte do quadro da fundação. Então tivemos um crescimento orgânico da fundação junto com pessoas negras desde o início.
A gente tinha um foco em desenvolvimento local, em São Miguel Paulista, periferia de São Paulo. A partir de 2016, com toda a nossa experiência, a gente resolveu mudar a missão para pensar as periferias urbanas, enfrentando as desigualdades sociais com recorte de raça e gênero.
Nosso conselho só tinha membros da família e resolvi ampliar. Convidei a Sueli Carneiro e o Jailson Souza e Silva, do Observatório das Favelas no Rio de Janeiro, que eu já conhecia bastante. A Sueli eu não conhecia. Ela aceitou e fomos desenvolvendo uma identidade, temos exatamente a mesma idade, vivemos as mesmas situações, entramos na USP, criamos organizações e a maior coincidência de todas: a filha dela ter estudado na escola que eu criei lá atrás.
A gente foi se gostando, criando identidade e ficamos amigas mesmo. No ano passado, ela ficou um semestre em Austin, nos EUA, e fui lá passar uma semana com ela. Uma delícia. Agora nós duas estamos fazendo um podcast. Estamos entrevistando mulheres 70 + que atuaram no espaço público. Deve começar a sair em outubro. Mas ainda não vou contar quem são as convidadas.
MC Voltando para sua infância e juventude, como foi crescer sendo a única mulher de 7 filhos? O apelido Neca vem dessa época, né?
NS Foi meu pai que deu esse apelido, vem de “boneca” e eu ficava muito incomodada. Meu irmão mais velho começou a me chamar de Neca, graças a Deus, e esse apelido mudou. Gosto, acho um apelido carinhoso. Era um ambiente muito masculino. Apesar de ser a única mulher, eu tinha muitos privilégios, às vezes viajava só eu e meu pai, tinha meu próprio quarto. Mas, como me disse uma terapeuta, eu estava muitas vezes fora da cena principal da família. Eu era muito boazinha, bem comportada, enquanto isso meus irmãos quebravam a perna, tinham que ir para o Pronto Socorro, sempre precisavam da atenção da minha mãe. Ela tomava lição de casa de todos os meus irmãos. Eu fazia lição sozinha e tirava boas notas.
MC Você já mencionou que teve desavenças com seus irmãos. Ainda tem?
NS Tenho mais identidade ou afinidade com alguns irmãos do que com outros, mas sempre fui muito respeitada nos meus posicionamentos políticos, mesmo com irmãos que não concordam exatamente.
MC Vocês divergem nos posicionamentos políticos?
NS Sim. Isso veio do meu pai, que se definia como um liberal do século XIX, mas um liberal no sentido filosófico mesmo. Gostava de discutir, provocava a pessoa para falar diferente, ter um bom debate. Um personagem que não existe mais, o conservador liberal democrático. Esta figura foi tragada pela extrema direita. Ele era uma pessoa culta, inteligente, competente, conservadora, liberal.
MC Como você se identifica: de esquerda, direita ou centro?
NS Acho que centro-esquerda.
MC É a pessoa mais à esquerda da família?
NS Acho que sim.
MC No livro você descreve brevemente seus grupos de leitura de Karl Marx na USP. Como foi essa experiência, sendo filha de banqueiro e do então prefeito biônico de São Paulo em plena ditadura? As pessoas sabiam quem você era?
NS Foi difícil, ainda mais porque era muito jovem, tinha vinte e poucos anos. Era mais imatura para lidar com essas contradições. Mas as pessoas me aceitavam, sabiam quem eu era, que meu pai era prefeito. Fui vivendo várias contradições e angústias ao longo da vida e fui amadurecendo também. Na época estava no MDB, meu pai na Arena. Mas ninguém me crucificava por isso. Era outro momento político, não tinha rede social, não tinha esse cancelamento. O mundo era outro. Hoje as coisas são tão mais radicais, certamente hoje não daria.
MC Você também conta que foi à missa de sétimo dia do Vladimir Herzog. Você conhecia ele?
NS Não, mas todo mundo que estava ligado à oposição ao governo foi na missa. Foi uma missa super tranquila, não aconteceu nada.
MC Você ainda morava com seus pais?
NS Não, já era casada. Casei com 22 anos e fui morar um ano em Stanford, EUA, porque meu então marido, engenheiro, estava fazendo mestrado lá. Voltei ao Brasil, terminei Ciências Sociais e entrei no mestrado. A minha mãe morreu em 77, quando meu filho mais velho tinha 15 dias. Foi um momento super difícil. Vivi a vida e a morte literalmente. Casei com meu segundo marido em 2000, foi uma virada enorme, uma paixão e transformação na vida. Juntos, criamos a fazenda Capoava, um hotel-fazenda. Nos separamos na pandemia. Foi uma transformação, de estar muito apaixonada e construir uma liderança feminina mais forte. Eu era uma pessoa mais dura, mais brava. No segundo casamento consegui fazer esse equilíbrio, ser assertiva, mas também saber acolher mais, cuidar.
MC O que fazem seus filhos?
NS O mais velho fez Administração e trabalha na Dexco, uma empresa do grupo Itaúsa. Ele é da área de relações institucionais e ESG. A minha filha é psicanalista, tem consultório, dá aula no Instituto Sedes e coordena um projeto aqui na Fundação. O meu filho caçula é economista e trabalha no Banco Itaú.
MC Você fez parte do grupo de transição do governo Lula. Como avalia o governo até agora?
NS Vivemos um momento muito complexo no mundo todo. Uma crise que é ambiental, de democracia, crise social de desigualdades, econômica, de trabalho com as tecnologias, a inteligência artificial. O Brasil está dentro dessa crise. A educação está dentro dessa crise. No Brasil temos um congresso difícil, de centro-direita, e um governo de centro-esquerda. Há tensão entre o Executivo e o Congresso. O governo está fazendo o que é possível. Na política a gente faz o que é possível. Avançamos muito em relação aos quatro anos anteriores, não tenho dúvida. Não é pouca coisa você conseguir arrumar a casa, colocar os dados em ordem, alguns ministérios que tinham sido acabados. A gente gostaria que estivesse caminhando mais rápido, mas eu acredito que o governo vai entregar o que prometeu, estou apostando nisso.
MC E com relação à greve das universidades federais, como avalia a resposta do governo?
NS Não estou acompanhando de perto. É triste que as universidades estejam com tão pouco recursos, é isso que posso te dizer. Acho muito triste, porque realmente as universidades são o esteio do país. A gente avançou muito com as cotas, grandes lideranças periféricas, pessoas negras entraram nas universidades. Isso é uma conquista muito importante, muito preciosa.
MC Você tem acompanhado essa movimentação de Fernando Haddad de propor uma revisão do piso de gastos em Educação e Saúde?
NS Ele está estudando. Acho que não tem resposta porque não aconteceu nada de concreto ainda.
MC Tem algum nome que você aposte como uma boa sucessão do Lula?
NS Não sei, ainda tem muito tempo. Vamos pensar ainda no Lula, nesse governo.
MC E na eleição à Prefeitura de São Paulo, tem algum candidato que vá apoiar?
NS Não vou fazer nenhum apoio público no primeiro turno. Quero ficar mais tranquila. Conforme for o resultado, penso no segundo turno.
MC O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, recentemente aprovou duas medidas na Educação:a privatização da gestão das escolas e a implementação de escolas cívico-militares. O que pensa sobre isso?
NS Sobre as escolas civico-militares, isso já foi muito discutido, os estudos que foram feitos já mostraram que elas não trazem nenhum avanço. Têm um custo muito alto e não tem nenhum resultado que mostra que elas sejam melhores que as outras escolas. Também não vejo sentido em colocar militares em funções pedagógicas. Não são capacitados para isso, não têm formação para isso. A gente tem que formar cidadãos, pessoas abertas para escutar, ao diálogo. Não faz o menor sentido, acho um equívoco.
Sobre a privatização, temos que ir com cautela. São 33 escolas no meio de 5 mil escolas em São Paulo, se não me engano. É temeroso a gente começar a pensar na privatização das escolas. Todos os estudos no mundo mostram que a privatização não traz melhoria na qualidade do ensino. No mínimo, os estudos apontam a igualdade entre as escolas públicas e as escolas privatizadas. Embora 33 escolas não façam nenhuma diferença em meio a 5 mil, meu receio é que ampliem esse projeto. Não tem nenhuma justificativa para isso.
MC A pauta do momento é a PL que equipara aborto a homicídio. Qual a sua opinião sobre isso?
NS Absolutamente inaceitável que uma pauta como essa surja do nada em regime de urgência. É inacreditável. O deputado Sóstenes Cavalcante disse que é um PL light. O Arthur Lira falando que faria a discussão sem açodamento. Como sem açodamento se está em regime de urgência?! Fico indignada que esse PL esteja na pauta de urgência, com 30 e tantos deputados assinando, deputadas mulheres apoiando isso. É um absurdo. Revoltante.
MC Você defende a legalização do aborto?
NS Olha, pessoalmente defendo, mas não acho que a gente tem clima pra isso ser discutido no Brasil hoje. A gente tem que escolher as lutas e os momentos históricos que essas lutas devem ser colocadas. Infelizmente, agora não dá. A gente tem que ser estratégico.
MC Você já fez algum aborto?
NS Não. Ainda bem. Ninguém quer sofrer um aborto.
MC Qual a sua opinião sobre legalização das drogas?
NS Não me aprofundo no tema, não tenho uma opinião. Sei que do jeito que fazemos está totalmente errado. Acho que deveria liberar a maconha, mas não tenho acúmulo de conhecimento para opinar. Prender esses meninos está tudo errado.
MC Você comentou que não está mais nas redes sociais. Por quê?
NS Estou no Linkedin por causa do livro. Saí das redes em 2018. Comecei a ser tão retaliada porque critiquei levemente o Bolsonaro, então dei tchau. Me chamavam de “banqueira comunista” e coisas do tipo.
MC Você já disse que a educação não é a salvação para resolver o problema da desigualdade no Brasil. O que deve ser feito então?
NS Claro que sem educação o Brasil não vai deixar de ser um país de renda média, não vai ser um país desenvolvido. Não existe exemplo de país que se desenvolveu com uma educação baixa, com o nível educacional que o Brasil tem. Mas não adianta ter só educação. Um exemplo é Cuba, um país com alto nível educacional e pobre. A gente precisa ter um conjunto de medidas para que o Brasil consiga se desenvolver e sair desse nível de pobreza. Entre elas, políticas públicas, de educação, saúde, da área social, e políticas de tributação, que é o que eu tenho falado. Tem que ter uma tributação progressiva de imposto de renda e taxação de fortunas. Mas isso tudo tem que ser discutido com a sociedade. Qual é o tipo de taxação? Não sei. Não basta educação, não basta filantropia, tudo isso é importante, mas só isso não vai mudar as desigualdades no país.
Gosto da proposta da Esther Duflo, prêmio Nobel de economia, que é uma proposta de taxação global dos bilionários. Não adianta taxar só em um país porque todo mundo foge para o país vizinho. Vou fazer um jantar para ela na semana que vem. É uma proposta do G20, então demora mais porque a proposta engloba muitos países. Isso não impede que o Brasil faça uma lição de casa interna com uma taxação de renda progressiva. Mas com um Congresso muito conservador é difícil, por isso aposto no global.
Esther Duflo ainda dá uma destinação para um fundo climático, porque muitas pessoas bilionárias falam: e esse dinheiro vai pra onde? E têm razão de questionar. Quando tem uma destinação e um comitê que vai ser responsável por acompanhar este fundo, tem mais credibilidade.
MC Como a elite reage a uma proposta de aumento de taxação?
NS Não sei, vou saber agora que Esther está chegando no Brasil, estou convidando as pessoas para o jantar. Nos EUA tem uma elite americana que pede pra ser mais taxada. Acho que aqui tem alguns, dois ou três, não sei. [risos]
MC No seu livro você cita um trecho do Paulo Freire, do livro Pedagogia da Esperança, e fala da importância de sonhar para promover a mudança. Aos 73 anos, qual o seu sonho?
NS Certamente não verei isso, mas sonho que os meus netos possam ver um país mais justo, menos desigual. A gente pode ser uma liderança no mundo na questão ambiental e, portanto, nessa transição de uma economia verde, transição na bioeconomia e uma liderança na questão da diversidade étnica e racial.