Representação e empoderamento de mulheres negras no ensino de História

FONTEPor Ieda Palheta Moraes, enviado ao Portal Geledés
Ieda Palheta Moraes

O presente texto é fruto das reflexões de minha dissertação de mestrado, na qual realizei um estudo de caso que ajuda a compreender as relações de gênero no cotidiano escolar de uma Escola Estadual de Ensino Fundamental Paraense, município de Ananindeua (PA). A partir dessa análise, estruturei um minicurso com o objetivo de discutir a temática de gênero no ensino de História, de maneira que os/as docentes pudessem perceber que a educação para a cidadania está presente em todos os aspectos do ensino de História, não se restringindo apenas a um objeto do conhecimento específico. Ela perpassa por todas as discussões referentes à construção de identidades, de lutas para obtenção de direitos e, principalmente, nas expressões de gênero.

Sendo assim, selecionei um tópico constituinte do minicurso em que analisei uma situação (estudo de caso) de cyberbullying ocorrido em junho de 2019, na Escola citada acima, com Juliana (nome fictício), uma aluna negra do 9º ano do Ensino Fundamental. A aluna teve sua privacidade invadida quando suas fotos foram retiradas do Facebook, por colegas de sua classe, para a realização de um vídeo, o qual a associava a um “dragão”. Esse foi produzido e compartilhado entre seus/suas colegas com a intencionalidade de depreciá-la.

A partir da análise dessa situação, consideramos dois aspectos importantes para a realização do referido estudo. O primeiro relaciona a representação das mulheres negras pela História ensinada na sala de aula com o estudo de caso. Já o segundo, discute sobre a construção de padrões estéticos de beleza feminina e como isso afeta a autoestima de meninas negras.

A representação das mulheres negras na História ensinada na sala de aula

Os livros didáticos de História, como uma das principais ferramentas utilizadas nas salas de aula, revelam-nos as representações cristalizadas ao longo do tempo sobre as mulheres negras. Conforme Caroline Miranda afirma, de modo geral, as mulheres são representadas em condição de escravidão e pobreza, resumidas a trabalhadoras braçais, pessoas inferiorizadas, subservientes e desumanizadas, sem destaque como agentes históricas ativas. Se as aulas de História ainda reproduzem uma imagem de submissão e desumanização das mulheres negras, é porque ainda estamos seguindo um modelo eurocêntrico, tradicionalista e patriarcal de História.

Se a representação da escravização das mulheres negras é fator problematizador, a invisibilidade e o silenciamento de sua participação social, política e cultural no espaço público ou privado precisa também ser problematizado. A escritora Chimamanda Ngozi Adichie nos traz a reflexão sobre o perigo de uma história única, e argumenta que, durante muito tempo, a história ensinada cristalizou apenas uma imagem das mulheres africanas e afrodescendentes, no lugar de escravizadas, as reduzindo ao espaço da subjugação. Infelizmente, o reflexo de tudo que vimos com essa discussão se manifesta nas situações cotidianas, como verificamos no estudo de caso, com a permanência da inferiorização das mulheres negras, o silenciamento de suas vozes, a persistência de uma história ensinada generalizante.

Padrões estéticos de beleza feminina e os reflexos na vida de meninas negras

A exposição da imagem da aluna no vídeo a associando a um “dragão” denota uma mensagem de não aceitação da estética da jovem negra. A construção de padrões de beleza são recorrentes na história e engloba um contexto temporal e cultural. 

Segundo Denise Sant’anna, no Brasil do século XIX, por exemplo, as mulheres brancas e de posses eram incentivadas a ingerir alimentos mais calóricos, pois a beleza estava no volume corporal. Quando uma mulher era muito magra, pensava-se que ela estava doente e, por isso, corria o risco de ficar solteira. 

Essa visão se modificou ao longo do tempo. Atualmente, os padrões estéticos entre as mulheres são copiados das modelos das passarelas, as roupas e os adereços são projetados para corpos magros, expondo-as a dietas e tratamentos radicais que colocam sua própria saúde em risco. O fator comum entre as mulheres do século XIX e as do XXI é a busca para agradar não apenas seus parceiros, mas conquistar aceitação social.

Naomi Wolf diz que as mulheres são estimuladas a encarnar o mito da beleza, mesmo que isso cause mutilações e perda de sua identidade. Os homens também são incentivados a conquistar essas mulheres, transformando isso numa obrigação social. A imposição de um padrão estético eurocêntrico em uma sociedade como a brasileira, de população negra, significa a não aceitação da diversidade. No caso das mulheres negras, ao serem comparadas com as mulheres brancas, perdem seus referenciais identitários, com a negação de sua cor, de seu cabelo e de suas formas.

Para Nilma Lino Gomes, a construção da identidade negra perpassa por aspectos sociais, históricos, culturais e plurais, em que uma pessoa ou um grupo identitário lança seu olhar sobre si mesmo, a partir da relação com o outro. Isso nos leva a refletir: como em uma sociedade, como a brasileira, pode-se construir uma imagem positiva da negritude, considerando o histórico de inferiorização e estigma que ensinou os/as negros/as, desde muito cedo, que, para ter aceitação social, seria preciso negar a si mesmo?

É contraditório perceber a imposição social de uma estética branca e as redes sociais, por exemplo, agem como uma vitrine para isso. Por outro lado, o ambiente virtual também legitima a apropriação da cultura negra por pessoas brancas, isto é, há uma popularização de preenchimentos labiais, turbantes, colares de búzios, dreads, tatuagens com temática tribalizada, que são legitimadas como símbolos de estilo e tendência de moda. No entanto, é negado aos/às negros/as a construção e afirmação de suas identidades. Mulheres negras com turbantes são estigmatizadas como macumbeiras, homens negros com dreads são vistos como desleixados e marginalizados. O que demonstra que as redes sociais refletem a socialização cristalizada do racismo estrutural.

A escola tem um papel importante para o exercício da cidadania com alteridade, pluralidade, respeito e aceitação à diversidade. Porém, infelizmente, ainda encontramos casos como o de Juliana. E essa não é a única maneira de expressão do racismo estrutural nas escolas. De acordo com Nilma Lino Gomes, “brincadeiras” ofensivas são pronunciadas frequentemente nos ambientes educacionais, com foco na aparência de crianças e adolescentes negros.

Nossa construção histórico-cultural imprimiu sobre os corpos brancos a exaltação de suas características como o ideal de beleza. Enquanto os corpos pretos, diferentemente, foram socializados como “feios” e “ruins”. Nessa perspectiva, muitos/as negros/as passaram a desprezar sua própria aparência. A autoestima negra interfere na imagem que esses sujeitos têm de si. A forma como os/as negros/as se veem e se sentem é fundamental para ressignificar construções racistas ligadas à estética e à cultura afro-brasileira e africana. A construção das identidades coletivas de positivação da negritude contribui para a afirmação das identidades individuais.

Uma das estratégias de dominação dos corpos negros foi a ridicularização, como a que ocorreu com Juliana. A estigmatização negra hierarquiza o fenótipo e, assim, evita o enfrentamento à branquitude. Outra estratégia é o incentivo ao auto-ódio, pois sem uma autoidentificação e um reconhecimento das violências praticadas pelo racismo, torna-se difícil combatê-lo.

A mudança na forma de ver a estética negra pode ocorrer por meio da positivação e valorização desses elementos. Valorizar os cabelos crespos, as tranças, os dreads, os símbolos e as cores de pele é uma forma de afirmação positiva, bem como inicia a quebra de um padrão eurocêntrico irreal e racista. Nesse processo de afirmação, ocorre, simbolicamente, o reconhecimento de origens e ancestralidades diversas, além de se construir um caminho possível para a ressignificação dos referenciais estabelecidos.

Essa discussão não deve aparecer apenas em uma comemoração esvaziada de sentido em torno do dia 20 de Novembro. Deve partir de uma noção de representatividade contínua e potente, presente tanto nas lutas dos movimentos negros quanto em estratégias antirracistas de ensino. O/a professor/a-pesquisador/a deve estar atento às demandas sociais dos indivíduos de suas salas de aula, assim como vimos no estudo de caso, para realizar ações interdisciplinares mediadas pelos currículos nos mais diversificados objetos do conhecimento. Assim se torna possível construir projetos de cidadania que de fato empoderem sujeitos negros e negras em sua pluralidade e diversidade. 

Assista ao vídeo da historiadora Ieda Palheta Moraes no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF08HI14 (8º ano: Discutir a noção da tutela dos grupos indígenas e a participação dos negros na sociedade brasileira do final do período colonial, identificando permanências na forma de preconceitos, estereótipos e violências sobre as populações indígenas e negras no Brasil e nas Américas); EF08HI19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas); EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).

Ensino Médio: EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais da emergência de matrizes conceituais hegemônicas (etnocentrismo, evolução, modernidade etc.), comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana (estilos de vida, valores, condutas etc.), desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade e preconceito, e propor ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às escolhas individuais). EM13CHS601 (Relacionar as demandas políticas, sociais e culturais de indígenas e afrodescendentes no Brasil contemporâneo aos processos históricos das Américas e ao contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual).


Ieda Palheta Moraes

Professora de História e Estudos Amazônicos da SEDUC-PA; Mestra em Ensino de História (PROFHISTÓRIA – UFPA/Campus Ananindeua); Integrante do GT de Gênero da ANPUH-Pará.

E-mail: iedapalhetamoraes@gmail.com

Instagram: @ieda.palheta


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.


Leia também:

Defender as ações afirmativas é defender os direitos educacionais das meninas e mulheres negras

Veja quem assinou a Carta-compromisso pelo direito à educação das meninas negras.

Cenários e desafios para a garantia da agenda de gênero na educação

-+=
Sair da versão mobile