Resenha: A visão revolucionária de Angela Davis

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Candiani, Heci Regina. São Paulo: Boitempo, 2016. 244pp. 

Angela Yvonne Davis é uma filósofa formada na Universidade da Califórnia e militante norte americana que se tornou um simbolo do feminismo negro. Teve participação ativa tanto no Partido Comunista dos Estados Unidos como no grupo político Panteras Negras. Sua prisão e julgamento, nos anos 1970, provocou uma comoção internacional. Após isso, como grande intelectual que se tornou publicou o livro “Women, race and class” (Mulheres, raça e classe, em português), em 1981 nos Estados Unidos. Entretanto, o livro em português chega ao Brasil apenas em 2016 pela editora Boitempo. A edição brasileira conta com um prefácio escrito por Djamila Ribeiro, essa afirma que a obra “é a tradução do conceito de interseccionalidade” (RIBEIRO, 2016, p.13). Dessa forma, Davis traz um olhar acadêmico e militante importantíssimo para se entender de forma crítica e relevante a relação entre opressões de gênero, raça e classe. 

O livro, que é composto por 13 capítulos, traz recorrentemente fatos históricos que são analisados de forma ampla pela autora. Para além disso, sua abordagem consiste, de modo geral, em explicar como ao longo da história as opressões se entrecruzam. Dessa forma, essas correlações vão construir um sistema que exclui mulheres negras, partindo de diferentes planos. O produto dessas relações de opressões é a construção do que Grada Kilomba (2010) chamou de um outro do outro. Assim, enquato a mulher branca e o homem negro são o outro do homem branco, a mulher preta é um outro de ambos, que sequer é entendida como pessoa. 

Primeiramente, então, Davis, conduz o leitor a entender como funcionava o sistema escravocrata e o legado que esse deixou para a população negra, sobretudo as mulheres nos Estados Unidos. Segundo ela e suas inúmeras referências, nesse sistema era cobrado de mulheres e homens escravizados o mesmo trabalho e a mesma produção na lavoura, pois o gênero, nesse contexto, não era usado para inferiorizar o indivíduo como na sociedade branca. Assim, a mulher negra apanhou e trabalhou tanto quanto o homem negro, foi desumanizada e animalizada igualmente. Por fim, a construção do papel da mulher negra nessa sociedade, evidencia Davis, é completamente diferente da de suas irmãs de outra raça. Em seguida, a autora apresenta as demasiadas violências que a mulher escravizada sofreu. Desde a chicotada até o estupro, Davis aponta, o quão revoltante eram as condições dessas. Se atendo aos fatos de que, mesmo grávidas tinham que produzir o equivalente a qualquer outro escravo e tão pouco eram salvas do açoite, caso não o conseguisse. Sendo então, após a gestação, obrigadas a deixar seus filhos recém nascidos sozinhos no chão para trabalhar na lavoura e depois os viam ser vendidos como mercadoria. Desse modo, é escancarado, que o corpo da mulher negra nunca foi visto como frágil, muito pelo contrário, trata-se de um corpo que tudo aguenta e do qual a humanidade foi retirada ao longo da história para justificar as violências que a ele se promovem. 

No decorrer da obra, Angela Davis, em um capítulo chamado “Estupro, racismo e o mito do estuprador negro” revela um sistema que perpassou a história. Nessa que é uma das mais longas e delicadas partes do livro, é explicado como o estupro está diretamente relacionado ao poder. E como o estereótipo racista da mulher negra promíscua, presente desde a escravidão, perpetuou como justificativa ou causa da sistemática e recorrente violência sexual contra essas. Ademais, a autora aponta, que ao longo da história o imaginário de que o homem branco tem direito sobre o corpo dessas, fez com que os estupros das mesmas fossem naturalizados. E, assim, marcados com a exibição do poder da supremacia branca e masculina que ficaram impunes desde a escravidão até estupros coletivos promovidos pela Ku Klux Klan no período após a guerra civil. 

Além disso, a autora leva o leitor a refletir e entender como e para que foi construído o estereótipo do homem negro estuprador nos Estados Unidos. Para isso, Davis apresenta como esse imaginário racista se constrói ao longo da história, em um primeiro momento, para justificar os demasiados linchamentos que ocorreram contra esses. É importante entender que toda essa problemática só sustentava mais a animalização de pessoas negras, por conta disso, muitas mulheres negras se ausentaram do movimento anti estupro. 

Abordando, ainda o campo que remete a sexualidade desses corpos, há um contraponto no que diz respeito a direitos reprodutivos e controle de natalidade. Durante as primeiras décadas do século XX, com a influência do eugenismo e desejo de dominância da raça branca, foram criadas leis que aprovaram a esterilização compulsória nos Estados Unidos. Essas surgem, não como uma forma de emancipação, mas como um controle populacional racista. Segundo Angela Davis, tratou-se de uma política genocida, tanto da população negra como da de imigrantes e indígenas. 

Em outro plano, a autora revela a importância de mulheres como Sojourner Truth, única negra presente em um encontro pelo direito das mulheres em 1851. E com uma realidade completamente diferente das demais presentes, marca o livro e a história com o discurso: “Não sou eu uma mulher?”. Nesse momento, fica evidente na visão que traz Angela Davis, o importantíssimo papel da interseccionalidade para se compreender que opressões de gênero, raça e classe se entrecruzam produzindo configurações diferentes do ser mulher. Todavia, são elencadas por ela inúmeras vezes que os movimentos sociais norte americanos se recusaram a enxergar tais diferenças. 

Nesse cenário, o movimento pelo sufrágio feminino se mostrou não só negligente as pautas raciais, mas também usou a seu favor os discursos eugenistas no século XX. Então, as protagonistas do movimento, se negaram a tomar um posicionamento sobre as leis Jim Crow, para Davis, esse foi um incorrigível abandono no momento em que as mulheres negras mais precisavam de seu apoio. Além disso, como discorre no capítulo sete, o discurso apresentado para defender o voto das mulheres, ganhou caráter racista ao propor, por meio desse, a supremacia branca. Assim, as ideias propagadas, eram as de que essas, sendo as mães da raça, deveriam ter o direito ao voto, ao passo que, existia uma ameaça desses serem estendidos a homens negros. 

Ademais, a linha de frente do movimento sufragista, na virada do século XX, abandonou também suas irmãs de outras classes. Composto, por um conjunto de mulheres burguesas e de classe média o movimento tenta ganhar força por vias excludentes. Nesse cenário, líderes como Belle Kearney vão propor como pré-requisito para o voto a posse de bens e assim exclui toda classe de trabalhadoras. Dessa forma, como aponta Davis, elas subjugam tanto a população negra, como também toda a classe trabalhadora. Os discursos, então, se perdem tanto em tentativas de serem aceitos pelo homem branco dominante, que se quer se atentar as diferentes mulheres que existem no país. 

Para mais, Mulheres, raça e classe segue criticando o movimento sufragista, por se embasar exclusivamente em um feminismo liberal e hegemônico. Nesse sentido, suas líderes como Susan B Anthony, na tentativa de adquirir o apoio de suas irmãs da classe trabalhadora, vão proferir o discurso de que as demais opressões podem ser toleradas ao passo que a de gênero não. Entretanto, segundo a autora, essas ideias não foram amplamente aceitas pelas trabalhadoras, que sabiam que o real inimigo era o patrão e sobretudo o sistema capitalista. Essas viam que o direito ao voto não resguardava seus companheiros da exploração burguesa. Desse modo, elas adentram tal luta, somente quando, passam a ver que por meio do voto, poderiam exigir melhores condições de trabalho. Por intermédio dessas, então, a campanha pelo sufrágio feminino passa a ter forte influência do movimento socialista. 

Ainda mais, com a vitória do sufrágio em 1920, mulheres negras foram impedidas de votar tanto por violências diretas, a exemplo de ações da Ku Klux Klan, como também por conta da recusa de suas cédulas. Nesse âmbito, o movimento que antes havia lutado fervorosamente pelo direito das mulheres votarem, pouco se manifestou quando suas irmãs pretas foram impedidas de exercê-lo. 

Da mesma forma, os socialistas norte americanos não deram a necessária atenção às pautas raciais do país, na segunda metade do século XIX e início do XX. Com a publicação do Manifesto Comunistas, de Karl Marx e Friedrich Engels, em 1848 se tem uma onda que levou a criação da primeira organização marxista no país, em 1852. A essa se deu o nome de Liga Proletária e, segundo Davis, nenhuma mulher o compunha. Contudo, à partir dos anos 1900, com a criação do Partido Socialista, as mulheres passam a atuar dentro da esquerda marxista estadunidense. Esses, incluíram em suas pautas as questões de gênero, ao defender o sufrágio feminino e dando origem a comissão nacional de mulheres. Nesse quadro, as pautas raciais não tiveram a mesma sorte e foram negligenciadas, pelo partido que acreditava que somente o proletariado era relevante. Ademais, o pequeno número de mulheres negras trabalhando na indústria, antes da Segunda Guerra, era tão pequeno, que essas eram ignoradas até mesmo ao que cabe o recrutamento delas para o partido. 

Apesar das falhas cometidas pelo partido socialista, Davis faz questão de reconhecer a importância da organização sindical IWW no que diz respeito às lutas antirracistas do período. Nesse cenário, os Trabalhadores Industriais do Mundo (IWW), fundado em 1905, incluíram tanto líderes mulheres, como também deram o devido reconhecimento às opressões específicas da população negra. Destoando então, da postura de seus contemporâneos marxistas que não o faziam. Todavia, se tratava de um sindicato industrial, em uma época em que, por conta da distribuição racista do trabalho, a maioria dos homens e mulheres negras estavam ocupando as funções de caráter agrícola e doméstico. Dessa forma, não conseguiam atingir um grande número de trabalhadores pretos, e segundo a autora, somente uma organização que estivesse disposta a lutar pela admissão desses no trabalho industrial, seria capaz de atingir uma fração maior. 

Outrossim, Davis faz referência a mulheres que, sendo comunistas, se tornaram figuras importantes na luta contra a opressão racial nos EUA. Assim surgem nomes como: Anita Whitney, dirigente do Partido Comunista da Califórnia, lutou pelo sufrágio feminino e foi, enquanto mulher branca do século XX, uma das poucas que se opôs aos linchamentos em massa de homens negros; Elizabeth Gurley Flynn, integrante ativa do Partido Comunista, compreendeu a importancia da libertação negra para a emancipação de todo proletariado; Claudia Jones, mulher e negra criticou sobretudo a negligência de seu grupo social da parte de seus companheiros marxistas. Assim, a exemplo da participação histórica dessas, a autora constrói e revela a importância que uma visão multi racial, que se atenta também às diferenças de gênero, possui para a construção de um luta de classes inclusiva. 

São listadas, também, inúmeras vezes a participação de mulheres brancas na luta antiescravagista e sobretudo antirracista referente a educação. Em um cenário onde a lei impedia a população negra de ter acesso à educação, o papel de professoras brancas que se opuseram a tal política foi fundamental. Dessa forma, Davis afirma que “os exemplos mais marcantes de sororidade que as mulheres brancas tinham em relação às negras estão associados à histórica luta do povo negro pela educação.” (DAVIS, 2016, p.110) 

Ao que diz respeito às mulheres negras no movimento associativo, Davis revela a importância da organização dessas na luta histórica contra o racismo nos Estados Unidos. Nesse âmbito, a primeira convenção nacional delas ocorreu em 1890. A partir dessa, surgem muitas outras, em resposta ao que a autora declarou ser os anos mais difíceis para a população negra desde a abolição da escravidão. As associações aparecem, então, como uma reação a cultura de linchamento que passa ser fomentada pela lei e também aos demasiados, e não menos recorrente, abusos sexuais aos quais as mulheres negras eram submetidas. Como ocorria nas agremiações comuns entre a branquitude, suas líderes também eram da classe média. Entretanto, a experiência cotidiana com o racismo as aproximava mais das vivências de suas irmãs trabalhadoras. 

A respeito do trabalho doméstico, a visão revolucionária da autora propõe a industrialização deste como forma de emancipação feminina. Seguindo sua abordagem histórica, demonstra a construção do imaginário da dona de casa, se atendo ao fato de que as mulheres negras possuíam uma diferente. Nessa, o modelo de feminilidade estabelecido leva a mulher a ser a serva, em tempo integral, do marido e da família. Nesse cenário, são apresentadas críticas ao movimento pela remuneração do trabalho doméstico. Porque, como as mulheres negras bem sabem, no decorrer da história, devido a exploração que foram submetidas ao terem que não só cumprir os afazeres de suas casas, mas também os das de outras mulheres, não existe salário capaz de pagar o que não possui sequer um fim. Ainda, discorre ela, sobre as injustas duplas e triplas jornadas das trabalhadoras. Então, para que as mulheres possam deixar de ser escravas dentro de suas próprias casas, Angela Davis propõe que as tarefas domésticas sejam industrializadas e a criação das crianças socializadas. 

Mulheres raça e classe, portanto, revela ser um instrumento importantíssimo para se pensar as violências sistêmicas em relações umas com as outras. A visão que Davis apresenta, deixa evidente a necessidade, que existiu ao longo da história de seu país, de pensar essas em conjunto e sobretudo combatê-las sem ordem de prioridade. A obra é importantíssima para se pensar um feminismo interseccional e também uma luta de classes que paute gênero e raça. Como acadêmica e militante que é, suas análises são feitas sobre uma visão revolucionária dentro dos moldes acadêmicos, seu discurso então, ultrapassa os muros da universidade, por meio dessa. É atual, e também vai além não só das fronteiras do tempo, mas também das de seu país. Ao passo que, como frisa Djamila Ribeiro no prefácio, é uma tradução de um conceito importantíssimo, e por meio dele as relações opressivas e violentas que se apresentam também no Brasil, podem ser analisadas em uma perspectiva mais ampla. Afinal, o racismo, a violência de gênero e a exploração da classe trabalhadora, infelizmente, são universais. 

Portanto, trata-se de uma obra fundamental, seu apanhado histórico revela inúmeras figuras negras importantíssimas e deixa mais que evidente a necessidade de se pensar a interseccionalidade dos agentes que oprimem. Desse modo, muitas produções que dizem respeito ao feminismo negro, como as de Grada Kilomba e Djamila Ribeiro se constroem a partir da visão revolucionario de Angela Davis nessa obra. 

REFERÊNCIAS: 

KILOMBA, Grada. “The Mask” In: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Verlag, 2. Edição, 2010. DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Candiani, Heci Regina. São Paulo: Boitempo, 2016. 244pp.

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