”O importante não é ser o primeiro ou primeira, o importante é abrir caminhos” — Conceição Evaristo
Aqui, nesse texto, lançarei mão do que chamarei de constrangimento de existir. Falo a partir de mim, Messias, e do que minha história tem atravessado: de menino negro, remanescente de quilombo, vindo de Santo Amaro – Ba, a estudante universitário do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde e aspirante a médico, com sede de mundo, com medo do futuro, com vontade de revolucionar. Falo das dores de ocupar espaços que não me foram destinados e dos silêncios que aprendi a decifrar. De existir nos interstícios: entre a política e a poesia, entre o campo e a cidade, entre a ciência e o corpo. O constrangimento de existir, então, não é só sentir vergonha de estar presente. É o incômodo profundo de ter que provar, justificar, negociar e muitas vezes performar a própria existência diante de estruturas que já decretaram que ela não deveria ser possível.
Grada Kilomba, em Memórias da Plantação (2019), escreve que a violência não se dá apenas pelo ato físico, mas também pelo epistemicídio: a recusa de que sejamos sujeitos que pensam, que elaboram, que escrevem. Existe uma produção histórica do silêncio que recai sobre corpos negros, sobretudo quando ousam pensar e criar. Eu sou o constrangimento de existir quando, em uma sala de aula universitária, minha voz soa como interrupção. Quando minha ideia precisa ser validada por algum “colega” branco para ganhar respeito. Quando me torno “exceção” por estar onde estou, mas ninguém pergunta o preço que se paga por ser uma exceção. É como se minha presença fosse um erro que precisa ser constantemente corrigido pela vigilância das normas: sociais, acadêmicas e raciais.
Frantz Fanon (2008), nos ajuda a entender esse lugar a partir do seu “negro olhado”: ele que, ao ser visto, não é um homem, mas um corpo racializado, enquadrado, pré-significado. “Olha, um negro!”, grita a criança em Pele Negra, Máscaras Brancas (2008) e o sujeito se dissolve em projeções; isso é muito comum quando nós negros alcançamos algum lugar dito de “prestigio”. O constrangimento de existir, então, é essa dissolução. É o não ter o direito de simplesmente ser. É ter que vestir máscaras – de força, de inteligência, de neutralidade – para se manter vivo. Para não ser lido como ameaça. Para ser aceito em mesas que não foram feitas para nós sentarmos.
Mas eu existo. E como existo. E existir é já uma desobediência. É estar contra esse sistema que nos deslegitima dia após dia. Ainda mais quando se é negro, periférico, afetuoso, inteligente, vulnerável. Eu sou o constrangimento de existir quando me permito sonhar. Quando falo que quero “ganhar o mundo”. Quando tenho o desejo de construir uma liga acadêmica pensando na saúde da população negra e quilombola. Quando proponho políticas públicas, quando organizo eventos de museu para crianças, quando levo a pauta da acessibilidade a sério. Quando quero escrever manual para médicos com enfoque racial. Quando não aceito ser apenas o “promissor”, mas o presente. Quando quero amar, viver, ter prazer. Quando reconheço o peso da solidão afetiva e o esforço para construir novas afetividades — por mim, pelas mulheres negras, pelos homens negros que me antecedem, pelos meus irmãos de cor e de dor.
bell hooks (2013) escreve sobre a política do amor radical. Amar, nesse sentido, é subverter uma lógica de dominação. É permitir que sejamos inteiros, mesmo sendo negro, periférico, afetuoso, inteligente e vulnerável. No meu caso, é amar minha mãe, minha madrinha como quem agradece por ser amparado. É amar meu corpo, ainda que eu queira que ele cresça, que ganhe braços, peito, pernas – como um gesto de afirmação e não de negação. No entanto, essa afirmação vai além da imposição social que tenta me reduzir a um corpo visto apenas como objeto de prazer. O corpo negro, muitas vezes hiperexoticizado e hipersexualizado, é constantemente reduzido a algo para consumo. Mas a revolução é justamente poder ver-me além disso, ocupar meu espaço e reivindicar o direito de ser mais do que o desejo imposto. O amor pelo meu corpo é, assim, um ato de resistência, pois é um gesto de autonomia e de afirmar minha identidade em sua totalidade, sem ser limitado pelo olhar objetificador do outro. É amar Santo Amaro, não como prisão, mas como raiz. É amar as personalidades negras da minha cidade, como Dr. Justiniano Clímaco ou Luiz Anselmo, e fazer deles faróis, porque os livros não os contam, mas nós sim. Eu, Messias, conto. Eu escrevo. Eu inscrevo.
Sueli Carneiro (2023) nos lembra que a luta antirracista é também uma luta ontológica: ela nos convoca a afirmar nossa existência contra a tentativa de apagamento. O constrangimento de existir, assim, é também esse chamado constante a explicar-se. Cada gesto é político, cada escolha de roupa, cada entonação de voz, cada posicionamento acadêmico ou amoroso. Tudo é performance — e é exaustivo. Como diria Audre Lorde (2020), “não sou livre enquanto qualquer mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”. E não sou livre enquanto eu mesmo precisar pedir licença para existir.
Por isso também estudo Saúde. Porque quero entender como o mundo atua dentro das pessoas. Como os traumas se acumulam nos corpos racializados. Como o abandono do Estado se reflete na saúde mental. Como a falta de representatividade médica impacta no atendimento à minha comunidade. Como o racismo institucional adoece e mata. Mas eu quero mais que entender. Quero transformar. Quero ser um profissional que acolha, um intelectual que dialogue, um formulador de políticas que tenha o chão da comunidade e o voo da utopia. Porque, como disse Ailton Krenak (2019), precisamos adiar o fim do mundo. E para isso, precisamos nos autorizar a viver.
“Viver nas ruínas”, como propõe Anna Tsing (2019), é um convite a pensar possibilidades mesmo quando tudo parece desabado. Eu já nasci nas ruínas – da escravidão, da desigualdade, da escola pública sucateada, do racismo epistêmico, da política elitista. Mas sou a prova de que há broto. E o constrangimento de existir, neste contexto, é também o espanto que minha existência causa. O incômodo que é ver um jovem negro tomando a palavra, organizando congressos, viajando para apresentar seus trabalhos, sendo conselheiro, tendo ideias e as tornando políticas públicas reais. O constrangimento de existir está nos olhos de quem nunca esperou me ver aqui. Mas eu estou.
E não estou só. Eu sou o acúmulo de muita gente. Dos quilombos que resistem. Das mulheres que me educaram. Dos amigos que me aplaudem. Dos livros que me moldaram. Dos afetos que me mantém de pé. E sou também contradição: da dúvida, do medo, da vontade de desistir. O constrangimento de existir também vive aqui, nessa dor de não saber se vai dar certo, nesse receio do fracasso, nessa urgência de vencer. Mas a dor também me move. Me empurra. Me rasga. E, sobretudo, me reconfigura.
Achille Mbembe (2018) fala da necropolítica, essa política de morte que seleciona quem pode viver e quem deve morrer. O Brasil é um país necropolítico. E nós, os “Messias” da vida, somos sobreviventes diários desse projeto. Por isso, cada iniciativa minha – seja no IFBA, nos conselhos estudantis, nos projetos de extensão, nos trabalhos com acessibilidade, nos eventos escolares sobre alimentação e saúde – é uma resposta. Uma recusa a ser número de estatística. Uma afirmação de vida.
O constrangimento de existir também é poético. Porque há beleza em resistir. Há beleza em beber vinho com quem se ama. Em planejar uma tatuagem que diga ao mundo: eu sou feito de sonhos, de livros e de luta. Em querer resignificar os bons momentos. Em acreditar que é possível propor um mundo mais justo – ainda que ele pareça sempre prestes a desabar.
Sim, às vezes tenho medo do futuro. Mas talvez o futuro também tenha medo de mim. Porque eu não venho sozinho. Eu venho com história, com povo, com comunidade. Eu venho com ideias, com pesquisas, com a força de quem sabe de onde veio. Eu venho com perguntas que não calam, com escritos que não se encaixam. Eu venho como um Messias que não promete salvação, mas sim presença. Existência. Corpo. Palavra. E isso já basta para constranger o mundo.
No fim, o constrangimento de existir é a fissura no sistema. É o momento em que ele precisa lidar com aquilo que deveria ter sido exterminado, silenciado, apagado. Mas que insiste em viver. Que ousa amar. Que ousa pensar. Que ousa vencer.
Referências
CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. 431 p.
CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. Organização de Flávia Rios e Márcia Lima. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
EVARISTO, Conceição. Declaração no programa Roda Viva, TV Cultura, São Paulo, 2021.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução de Ana Luiza Libânio. São Paulo: Elefante, 2020.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 85 p.
LORDE, Audre. Irmã Outsider: ensaios e palestras. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Elefante, 2020.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Trad. Lílian Lessa. São Paulo: N-1 Edições, 2018. 120 p.
NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016.
NASCIMENTO, Abdias do. O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
NASCIMENTO, Abdias do. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. 3. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2019.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2017.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro?. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
TSING, Anna Lowenhaupt. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019. 284 p.
Messias de Lima Santos Junior é estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde na UFBA, com formação em Eletromecânica pelo IFBA. Quillombola e pesquisador independente, atua nas áreas de saúde pública, educação e vulnerabilidade social. É defensor da inclusão de comunidades quilombolas e grupos minoritários, com foco na interseção entre raça, saúde e acessibilidade, promovendo a igualdade racial e social.
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