Desafios mortais na internet são urgência que o Congresso ignora

Celular na mão, menina foi desafiada numa rede social a inalar desodorante aerossol. Sofreu uma parada cardiorrespiratória

Flávia Oliveira (Foto: Marta Azevedo/ Arquivo O Globo)

Uma menina morreu. Podia ser sua filha, neta, sobrinha, afilhada. Sarah Raíssa Pereira de Castro tinha 8 aninhos e a vida inteira pela frente. Não mais. Celular na mão, foi desafiada numa rede social a inalar desodorante aerossol. Sofreu uma parada cardiorrespiratória, e —apesar do esforço do avô, que a encontrou desacordada, e da equipe médica que tentou reanimá-la — sua morte cerebral foi constatada três dias depois da internação. A polícia do Distrito Federal abriu inquérito para apurar as circunstâncias do óbito e identificar os responsáveis pela viralização macabra. Em março, sem comoção, o Brasil já tinha perdido em situação semelhante Brenda Sophia Melo de Santana, de 11 anos, moradora de Bom Jardim, Agreste Pernambucano. A causa da morte foi “possível inalação, por via oral, de desodorante aerossol”. A família mencionou o desafio do desodorante, a que a pequena teve acesso também via internet.

Entre 9 de março, quando Brenda morreu, e 13 de abril, dia da morte de Sarah, boa parte da Câmara dos Deputados esteve empenhada em buscar alternativas para assegurar a impunidade da organização criminosa que atentou contra a democracia, numa trama que, segundo o procurador-geral da República, Paulo Gonet, se desenrolou de julho de 2021 a 8 de janeiro de 2023. Parlamentares leais ao ex-presidente Jair Bolsonaro, tornado réu pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal por abolição violenta do Estado Democrático e tentativa de golpe, se aglutinaram para, na semana que os cristãos têm como santa, protocolar requerimento de urgência para um Projeto de Lei que anistia golpistas de todas as plumagens, restabelece direitos políticos, assegura a liberdade de atacar quem quer que seja na internet e criminaliza o Judiciário. Não há desodorante que tire do PL o fedor de ataque à democracia. O odor exala dos 262 deputados que assinaram o pedido para o texto ir direto ao plenário, sem passar por nenhuma das comissões da Câmara dos Deputados, como prevê o rito convencional.

Mais da metade da dita Casa do Povo tem pressa para livrar Bolsonaro e seus apoiadores da condenação e do cumprimento de penas. Nada fazem contra a vitimização de meninas e meninos do Brasil pelos crimes disseminados por uma internet sem freio. Em verdade, a bancada da extrema direita, em aliança com as big techs, fez o máximo para impedir a aprovação da lei para regular e responsabilizar as plataformas digitais. A primeira tentativa foi em meados de 2023, depois de uma onda de violência contra escolas. Em março daquele ano, um adolescente de 13 anos esfaqueou quatro professoras e um aluno numa unidade de ensino na Vila Sônia, Zona Oeste da capital paulista. A professora Elisabeth Tenreiro, de 71 anos, morreu. Dias depois, um atentado deixou quatro crianças mortas numa creche em Blumenau (SC). Investigações revelaram que jovens e adolescentes são recrutados e treinados, via plataformas digitais, para cometer crimes. O ano terminou com recorde de ataques — 11, de 36 registrados no país desde 2001 — e zero regulação.

No ano passado, nova oportunidade foi desperdiçada. Em vez de dar andamento ao substitutivo finalizado pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), o então presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), preferiu aposentar o texto e instituir um grupo de trabalho para tratar da proposta, que jamais voltou ao papel. O ministro Alexandre de Moraes, do STF, responsável pelo inquérito das milícias digitais, vive a dizer que “internet não é terra sem lei”. Não faltam juristas a atestar que liberdade de expressão, ao contrário do que defendem expoentes da extrema direita brasileira em coro com o movimento global de mesma natureza, não é direito absoluto, mas relativo. É limitada pelo dano que pode provocar pela propagação da violência, expressa no racismo, na misoginia, na LGBTfobia, no bullying, na injúria, na incitação de todo tipo de crime, incluindo automutilação e suicídio.

O Legislativo brasileiro tem blindado o território livre da internet de controle — que, por sinal, incide em todas as outras relações do mundo real — para fazer do ódio instrumento político-ideológico. Não se importa com a vida de meninas inocentes como Sarah ou Brenda. Em 12 anos, segundo a Secretaria de Direitos Digitais do Ministério da Justiça, 56 crianças e adolescentes brasileiros, de 7 a 18 anos, morreram ou se feriram gravemente em decorrência de desafios compartilhados nas redes sociais. Nesta semana, policiais da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima realizaram operação contra uma organização dedicada a crimes de ódio pela internet, mais por prazer e poder que por dinheiro. Um menino de 14 anos é apontado como líder. Por dia, a Polícia Federal recebe 1.500 denúncias sobre conteúdos potencialmente abusivos ou perigosos para menores. São dados enviados pelo Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas (NCMEC), na sigla em inglês), órgão do governo dos Estados Unidos que compartilha informações com outros países.

A situação é gravíssima. Não há agenda mais urgente do que garantir segurança — e vida — a brasileirinhas e brasileirinhos, que podem ser seus filhos, netos, sobrinhos, afilhados.

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