Cotas Raciais

13 anos da Lei de Cotas: retrato de um tempo nas universidades brasileiras

Até a primeira década do século XXI, as salas de aula das universidades públicas brasileiras exibiam uma cena que destoava da realidade do país. Predominavam estudantes brancos. Pretos, pardos, pobres e indígenas estavam quase ausentes. Essa era a face concreta da chamada “democracia racial”: um mito que se sustenta à custa da exclusão sistemática da maioria.

Em 29 de agosto de 2025, completou-se 13 anos da Lei de Cotas no país, promulgada em 2012, após passar mais de uma década em tramitação no Congresso Nacional. O texto definia a reserva de 50% das vagas de universidades federais para estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita. Dentro desse grupo, haveria reserva de vagas para candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência. 

A luta do movimento negro por ações afirmativas em universidades começou muito antes da conquista da lei. Ainda em 2001, a participação brasileira na Conferência de Durban (III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas) foi essencial para que algumas universidades do país implementassem  as cotas raciais, de forma independente, no inicio dos anos 2000. 

Jaqueline Lima Santos, consultora de projetos em Equidade Racial e de Gênero de Geledés, explica que essas experiências autônomas começaram a ser alvo de processos judiciais. Até que, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF), julgou que as cotas raciais são constitucionais, o que abriu caminho para uma lei federal acerca do tema. 

“Treze anos depois, as universidades têm uma outra cara, são mais diversas. E não é só a cara dos estudantes, mas também de professoras e professores do ensino superior. Passamos a ter estudantes pretos, pardos e indígenas em cursos que esses grupos não acessavam, como economia, engenharias e medicina”, afirma. 

Para a pesquisadora, a conquista do movimento negro foi além e significou a democratização da universidade brasileira. “O resultado é a discussão sobre a qualidade da educação pública, a ampliação do acesso ao ensino superior público e o aumento da representação de grupos historicamente discriminados em diferentes cursos”, diz. 

Segundo o governo federal, mais de 1,1 milhão de estudantes foram contemplados por meio da Lei de Cotas. Em 2019, por exemplo, 55 mil estudantes pretos, pardos ou indígenas garantiram acesso ao ensino superior. Sem essa política pública, esse número seria de 19 mil. 

Em 2023, o escopo da lei passou por uma revisão que resultou em mudanças importantes, como a inclusão de quilombolas, a ampliação para os programas de pós-graduação, a realização de monitoramento de impactos da política e a diminuição da renda per capita para um salário mínimo – para estar apto a concorrer às cotas é preciso ter, no máximo, um salário mínimo per capita. Antes, era um salário mínimo e meio. 

“A lei passa a ser permanente com revisão a cada 10 anos, isso dá mais segurança jurídica. Outra conquista é que os alunos passam a ser a prioridade em políticas de assistência estudantil, devido às diversas vulnerabilidades preexistentes”, pontua Jaqueline Lima Santos. 

A pesquisadora acrescenta que, apesar dos avanços proporcionados pela política, os estudantes cotistas enfrentam dificuldades em obter mobilidade socioeconômica e garantir espaço no mercado de trabalho, sobretudo em posições de poder e decisão. Diante disso, Geledés prioriza a contratação desses grupos, o que contribui “para um desdobramento positivo das políticas de ações afirmativas”, finaliza. 

Geledés aposta em profissionais que fizeram uso de cotas raciais 

Resultado da luta do movimento negro, a lei nº 12.711, de 2012, mudou a cara das universidades brasileiras e promoveu a democratização do acesso ao ensino superior. Ciente desses avanços, Geledés – Instituto da Mulher Negra tem em seu quadro de profissionais mulheres que foram beneficiadas por essa política. 

Em 2025, Natália Carneiro, coordenadora de Comunicação Institucional da organização, foi aprovada no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo via sistema de cotas. A USP, embora tenha sido berço do debate sobre tais medidas, foi a última das grandes universidades públicas do país a aderir à reserva de vagas a pretos, pardos e indígenas (PPI), tendo iniciado esse processo apenas em 2018.

“Sueli Carneiro tem uma fala clássica que diz: ‘quando eu estava na USP, os estudantes negros de toda a universidade não enchia sequer uma Kombi’. Hoje, ao atravessar o campus da USP, é possível perceber que já não se trata de uma Kombi, mas de várias. Essa mudança materializa a possibilidade de existir coletivamente nesse espaço, não apenas como exceção, mas como presença significativa e produtiva”, relata Natália. 

Ela pontua, ainda, o quanto o sistema de cotas abriu uma vereda na hegemonia branca na produção intelectual e profissional. “As cotas trouxeram uma nova face para a universidade pública brasileira. Além de ampliarem o acesso, possibilitaram a formação de pesquisadoras e pesquisadores que hoje são reconhecidos e premiados, transformando as narrativas produzidas no universo acadêmico”, afirma. 

Gabriela Costa, integrante do programa de Educação e Pesquisa de Geledés, também fez uso da política de cotas. Em 2019, ingressou em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Quatro anos depois, em 2023, passou a integrar o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da mesma instituição (PPGAS/UNICAMP). “A educação sempre foi a maior aposta da minha família”, conta. 

Para ela, as cotas raciais permitiram o acesso à educação de qualidade e a realização de sonhos. “Me abriu portas inimagináveis. Agradeço a minha mãe, minha madrinha, minha vó e aos orixás por terem feito tanto por mim, me possibilitando viver tudo que a educação tem me proporcionado”. 

Já Letícia Leobet, assessora internacional em Geledés, fez uso das cotas raciais no ano em que passaram a ser implementadas em âmbito federal, em 2013. É formada em Ciências Sociais, com linha de formação em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná. Na sua trajetória acadêmica, pesquisou sobre as cotas e as barreiras vividas por estudantes. 

“Vejo a lei de cotas como algo extremamente importante, mas que tem um desafio grande no que diz respeito a permanência dessas pessoas na universidade e no impacto nas suas subjetividades, saúde mental, trajetória. Há também a necessidade de que a gente tenha um olhar mais profundo para o pós – e depois que essas pessoas negras se formam?”, questiona. 

Carolina Almeida, assessora internacional da organização, também é fruto dessa política. A maior parte da sua trajetória acadêmica perpassa pela política de cotas raciais. É formada pela Universidade de Brasília (UNB) em Relações Internacionais e Ciência Política, mestre e doutora em Estudos Latino Americanos. 

“A Lei de Cotas me proporcionou chegar em Geledés, ter empoderamento pessoal e profissional, um entendimento da realidade que me circunda e do que são essas estruturas opressoras que nos envolvem, e ao mesmo tempo me deu ferramentas para superá-las”, reforça.

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