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Há quase um ano, foleei os cadernos de poemas de Sarah Marques, liderança comunitária da comunidade Caranguejo Tabaiares, localizada na Ilha do Retiro, em Recife (PE), há cerca de um século. Tive a oportunidade de reencontrá-la durante o Encontro da Rede de Adaptação Antirracista, que aconteceu no primeiro final de semana de julho de 2024. No caderno, havia um universo de novos imaginários e sensibilidades como horizonte, características aprendidas a partir da vida cotidiana de mulheres que, no corpo e no chão do dia a dia, enfrentam o racismo ambiental.
Aos 44 anos, Sarah é cofundadora do coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste, educadora popular e membra da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. Liderança ou defensora são palavras que, por vezes, tentam expressar a força de reação acumulada por mulheres, mães, avós, tias e irmãs quando os seus estão em ameaça, seja pela especulação imobiliária, pelo Estado chegando sem aviso com o braço armado da polícia ou com projetos de intervenção urbana, que descaracterizam a vida em comunidade sem oferecer chance de diálogo aberto.
Mas, além de força, precisam do solo para desaguar. Transbordar. E além do solo, uma caneta na mão vai bem. Como disse Elisa Lucinda: “conquistar a vitória pela palavra.”
Com um caderno de poesias em mãos, Sarah encontrou uma brecha entre embates e disputas para descansar a caneta no papel. Além do ativismo, é na arte que ela consegue traduzir indignação, sonho e luta. Suas linhas trazem para a Coluna Tecendo Democracias e Territórios a tensão e o desejo pela terra. Beleza e força, unidas, evidenciam as armadilhas das coisas que se colocam em oposição e a potência das que se colocam em contato.
No final de 2024 foi anunciada a construção de 280 unidades habitacionais na comunidade. Entretanto, o projeto de Urbanização Social apresentado pela prefeitura não previu condições para manter uma horta central para sua população. Ao que parece, o entendimento da gestão é de que é preciso escolher entre a provisão habitacional e a horta.
“Quando fiz esses poemas estava pensando no meu território. Fiz pensando que esse é o lugar que eu quero viver, que meus avós aterraram, e fiz diretamente da horta. Lembrei do quintal da minha avó, de como é duro essa camada de cimento, o trabalho que a gente teve para refazer e regenerar o solo. Queria que as pessoas soubessem que dessa terra brotam coisas boas, alimentos, ervas, que a gente também se cuida e se alimenta desse lugar da horta”, afirma Sarah Marques.
Um dos principais desafios dos projetos de intervenção urbana, especialmente nos programas de urbanização de favelas, está na deficitária participação social e na baixa qualidade do diálogo com as comunidades envolvidas. Ouvir os moradores é uma etapa essencial, mas não suficiente: é preciso responder ao que é dito, incorporar demandas e rever propostas a partir da escuta. Por mais bem-intencionado ou tecnicamente apropriado que o projeto possa parecer, chegar com um projeto pronto não garante adesão.
“Pensamos estrategicamente em ter uma horta no terreno que nos foi prometido por tanto tempo. Por isso, essa horta está em um terreno que chamamos de ‘terra prometida’. Também chamamos essa horta de ‘semeando resistência’. Mas hoje me dói perceber a disputa de narrativa com as imobiliárias, com o poder público, que ao invés de nos defender está dividindo a comunidade, dizendo que ou tira a horta ou constrói unidades habitacionais. Na verdade, hoje o habitacional está sendo construído no terreno na horta”, denuncia a ativista.
Quando as soluções do Estado não dialogam com as formas de vida já existentes, perdem potência e legitimidade. Afinal, são as pessoas que fazem a comunidade. Ignorar isso é mera reprodução de lógicas excludentes marcadas por traços sutis – e nem tão sutis – de racismo. As imagens a seguir são uma das formas que Sarah encontrou de expor os sentimentos da sua comunidade e familiares.
Sarah Marques é cofundadora do coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste, educadora popular, mulher negra, 44 anos, membra da Rede de Mulheres Negras de PE, da Rede por uma Adaptação Climática Antirracista, conselheira do Centro Brasileiro de Justiça Climática, Observatório do Clima e da Rede Gera (governança de enfrentamento ao racismo ambiental).