Rafaela C. Procknov, é Doutora e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Atualmente é docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo e líder do Grupo de Pesquisa Constelações literárias de autoria negro-africana, afro-latina e afro-brasileira (CNPq/IFSP).
A celebração do Dia da Consciência Negra, todos os anos em novembro, alça a temática da negritude e seus sentidos, para nos expressarmos seguindo os termos do mestre Kabengele Munanga, ao primeiro plano. Imprensa, instituições escolares, mundo do entretenimento, espectro político, universidades e até algumas organizações religiosas, em suma, o debate público tem se dedicado a celebrar a referida data. Se pensarmos que vivemos no país que já foi considerado o “paraíso luso-tropical”, o laboratório do “cadinho das raças”, admitiríamos, sem pestanejar, que o chamado “Novembro Negro”, mês no qual o negro tem a possibilidade (limitada, é certo) de estar em evidência, é, no mínimo, uma reversão da negação, um desrecalque daquilo que sempre esteve presente, mas não era formulado (isto é, a assunção da sociedade brasileira como uma sociedade racialmente não democrática).
À vista disso, teríamos chegado a um contexto em que a ideia da democracia racial, do paraíso luso-tropical, teria sido superada. Por outros termos, de modo mais ou menos geral, haveria uma espécie de consenso no presente de que, sim, o racismo existe. Mas o mais “notável” e, obviamente, cínico, é que parece ser a conformação de um racismo sem racistas. Um racismo sem aqueles que sofrem o agravo. Uma espécie de racismo abstrato, sem agentes que o propagam e sem sujeitos que dele são alvo. Desse modo, não causa estranhamento social e político que o negro desponte, cada vez mais, como tema em circuitos que tradicionalmente eram refratários a sua agenda, mas que seguem como protagonistas em ceifar, material e simbolicamente, as vidas negras.
Trazer à baila a temática racial, a questão do negro, como tem sido feito nos últimos anos, seria uma demonstração inigualável de que enquanto sociedade temos avançado, temos aceitado a ideia de que nem todos participaram em igualdade de condições nesse paraíso proclamado, por tanto tempo pelo Estado, seus aparatos e pela elite branca, como racialmente democrático. Não obstante, a aclamação da negritude, nos quatro cantos do país em novembro (e cada vez mais fora deste mês também), mais do que nos colocar diante do combate efetivo do racismo e de suas mazelas, tem nos colocado ante fenômenos outros: o da pasteurização do debate, do esvaziamento da pauta racial e da adequação desta aos poderes sociais, culturais e políticos vigentes. Desse modo, assistimos, perplexos, à instauração de dois dispositivos articulados: o da luta ficar restrita aos padrões estabelecidos no quadro da dinâmica da representatividade (simbólica e cultural), o que impõe limites, uma vez sendo esta efetivada em espaços, lugares e arranjos gerenciados pelas classes dominantes; e o da consagração de uma gama de termos, de ampla circulação e de pouca densidade teórico-conceitual, que funcionam como sustentação (e quiçá posição legitimadora) de tais arranjos. Com efeito, presenciamos hoje o sequestro da pauta racial pelas mesmas instâncias que historicamente têm contribuído para a persistência do chamado racismo estrutural. Não é à toa, por exemplo, que os meios de comunicação da hegemonia burguesa passaram a defender a ideia de representatividade e a denunciar casos de discriminação racial e de preconceito racial em sua grade de programação ao mesmo tempo que defendem as reformas neoliberais mais sangrentas contra a população trabalhadora (diga-se, de passagem, negra, em sua maioria). Assim, ninguém se atreveria a dizer que hoje não se discutem os assuntos relacionados à participação cultural, política, econômica do segmento negro no Brasil. Nosso problema não parece mais, nesse sentido, ser a ausência da temática racial para além dos circuitos acadêmicos, e sim os modos e formas de resistência social, política e cultural, bem como os termos em que essas têm circulado e os conceitos, formulações, teorizações que mobilizam no debate. E essas têm circulado, aparentemente, circunscritas, em grande medida, pela gramática do liberalismo. Uma gramática que tem fagocitado a tal ponto os signos da negritude e seus sentidos que, iludidos, temos acreditado que uma edição de reality show repleta de pessoas negras1 ou, ainda, mais negros circulando nos programas de TV trabalharia por si só, sem a mudança profunda das formas da sociedade humana, para a tão necessária resolução do “problema” do negro. Se aceitarmos a proposição de que o racismo é estrutural, não nos contentaríamos com essas armadilhas, pois o negro vencer é sinônimo de não integrarmos mais as franjas mais precarizadas de trabalho, de não sermos mais alvo em potencial da carnificina policial, de não sermos a exceção que confirma a regra, de promovermos, de modo organizado e coletivo, o desmantelamento das estruturas que possibilitam que o racismo não seja meramente um fenômeno individual, psicológico, isolado, mas um elemento que perpassa todas as instâncias que organizam a nossa vida social, política e econômica. É por isso que, como já anunciou Angela Davis, não basta que ocupemos os espaços, precisamos transformá-los. Transformá-los mais do que alimentar um (novo?) mercado temático, é questionarmos e implodirmos as estruturas de dominação (não ser parte delas!) que nos aprisionam. Sendo assim, apostamos na ideia de uma representatividade genuína, que venha acompanhada pela participação social ativa; pelo letramento racial consubstanciado à noção de que a classe informa a raça, de que a raça informa a classe, para nos expressarmos novamente segundo Davis. Vislumbramos, assim, o horizonte de uma ação política radical e insubmissa contra a ordem, promovida por negros e negras, como diria Florestan Fernandes, e que nos dará as condições de aplacarmos o racismo cruel que vigora no Brasil desde há muito.
A Consciência Negra, para nós, dessa maneira, não é um eixo temático, é, fundamentalmente, um convite a pensar na vida do negro. Esta, como anunciou Guerreiro Ramos, nos idos dos anos 50, é frontalmente oposta à aclamação do negro-tema, tão agradável aos festejos do mainstream, que hoje tem se metamorfoseado em múltiplas facetas: no discurso vazio da empatia à diferença; na tradução, por casas editoriais, de autoras e autores negros, mas desde que sejam preferencialmente da América do Norte; na fala bem planejada de jornalistas que transitam pelos meios hegemônicos de comunicação e que geralmente apresentam uma discussão estéril e não autêntica acerca das relações raciais; de intelectuais brancos que discutem o eurocentrismo no currículo ao mesmo tempo que são reativos à produção acadêmica de seus pares negros2, enfim, uma espécie bem arranjada de limpeza moral da consciência, com a sutileza da desfaçatez brasileira para lembrarmos de Machado3. É preciso insistir sempre que o mainstream não demanda anseios de subversão da ordem, da transformação radical das estruturas de opressão; ele, na verdade, atendendo aos desejos de legitimação de um sistema que não pode mais se dizer excludente, tem aparentemente dialogado “intensamente” com os chamados grupos minoritários, porém o que tem promovido é o abafamento e arrefecimento da revolta e da luta negra.
Em síntese, com Guerreiro Ramos, enaltecemos o negro-vida (não o negro-tema), porquanto este é proteico e insiste em nos lembrar que a Consciência Negra não é um calendário, é a batalha, jamais suplantada, dos movimentos sociais negros em busca de nossa pele ontológica, em busca não só em novembro, mas permanentemente da liberdade de auto-organização e de uma existência livre do racismo.
Referências:
ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018.
ASSIS, Machado de. “Bons dias!”. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/teatro/11-textos-dos-autores/799-machado-de-assis-bons-dias. Acesso em 15 de nov. 2023.
CARDOSO, Lourenço. A branquitude acadêmica, a invisibilização da produção científica negra e objetivo-fim. In: GÓES, Luciano. 130 anos de ilusão: a farsa abolicionista em perspectiva desde outros olhares marginalizados. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2019.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.
FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. Salvador: EdUFBA, 2008.
FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Expressão Popular, 2017.
MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Feminismos Plurais, 2019.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Autêntica, 2009.
RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades 1992.
Rafaela C. Procknov
É Doutora e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Atualmente é docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo e líder do Grupo de Pesquisa Constelações literárias de autoria negro-africana, afro-latina e afro-brasileira (CNPq/IFSP). Endereço eletrônico: procknov.rafaela@ifsp.edu,br.
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