Tecendo Democracias e Territórios

A Terra como Sujeito: Uma Alternativa Jurídica e Ancestral para a Crise Climática

Em 28 de maio de 2022, na cidade do Recife, mais de 70% do volume de chuvas esperado para todo o mês de maio foi registrado em menos de 24 horas1. Os principais meios de comunicação do país noticiaram a maior tragédia ambiental de Pernambuco dos últimos 50 anos2, causando mais mortes e danos desde 1975. De acordo com o Atlas dos Desastres do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional3,o desastre climático  causou  124 mortes, mais de 117 mil pessoas desabrigadas ou desalojadas e prejuízos superiores a um bilhão de reais. 

O que ocorreu em Recife é um dos diversos exemplos que se repetem de norte a sul do Brasil e em outras partes do mundo. Os impactos climáticos decorrentes do aquecimento global de 1,1°C desde a era pré-industrial (1850) são evidentes. Em dezembro de 2021, o litoral sul da Bahia enfrentou uma situação semelhante, com dezenas de mortos e centenas de desabrigados. No ano seguinte, em 2022, fortes chuvas em Petrópolis, no Rio de Janeiro, resultaram em 20 mortes.

Os eventos climáticos extremos foram também identificados nos continentes asiáticos, africanos e na América do Norte. Secas, estiagem e queimadas atingiram níveis mais críticos do que em anos anteriores4. Em 2023, chuvas extremas no município de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, causaram a morte de 61 pessoas. No mesmo ano, os rios da Bacia Amazônica enfrentaram uma seca histórica. Em 2024, secas e queimadas continuaram a assolar a Amazônia e o Pantanal, enquanto uma enchente histórica no Rio Grande do Sul resultou em mais de 178 mortes e milhares de desalojados.  

Foto: Vitor Nisda

Os Estados, o sistema de justiça e os poderes Legislativo e Executivo não estão preparados e se recusam a assumir responsabilidade pelas mortes e a mitigar as consequências para a população mais vulnerável: famílias desabrigadas, comunidades ilhadas, níveis hídricos alarmantes, temperaturas elevadas e um sentimento de desesperança diante de um problema global causado pela degradação da Terra. Essa degradação tem suas raízes em uma visão colonial de exploração ilimitada da natureza. Os efeitos do Antropoceno5 aproximam-se de uma escala irreversível e os esforços internacionais e nacionais não têm sido capazes de retardar ou mitigar suas consequências

Diante dessa realidade apocalíptica, Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo, publicado em 2017, critica diretamente o conceito de desenvolvimento sustentável e reforça o distanciamento entre o homem e a natureza. Ele sustenta que o nosso lugar no mundo não deve ser centralizado apenas na raça humana, que outras formas e compreensões de vida devem ser respeitadas, propondo, assim, um afastamento da visão puramente antropocêntrica6.

No livro, Krenak nos apresenta o modo como sua comunidade compreende a natureza. Ao falar de uma serra próxima à sua comunidade no Rio Doce, menciona: “(…) Aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade (…)”. Ele expõe os ritos e a experiência dos povos andinos do Equador e da Colômbia, que cultuam a terra, e dos povos massais, no Quênia, que possuem regiões territoriais inteiras consideradas sagradas e que mostraram resistência às tentativas da colônia inglesa de transformá-las em um parque7.

A resistência milenar das violências coloniais nos dá um caminho para enfrentar os problemas causados pela exploração capitalista. É necessário escutar as vozes de quem sempre defendeu e conviveu com a natureza, preservando-a e compartilhando sua vida com ela. A desesperança com o futuro é algo sentido e vivido na nossa geração, diante das preocupações reais, da capacidade da terra em sustentar às formas de subsistência vital, principalmente daqueles que não estão nos grandes centros de poder econômico, daqueles que têm sua existência  encarada como descartável – os habitantes das “Zonas de Sacrifício”8

Em um contexto internacional, o termo “Mãe Terra” ou Pachamama ganhou popularidade nas décadas de 1980 e 1990 no Equador e na Bolívia, impulsionado pela mobilização popular de povos indígenas e camponeses na América Latina, conhecida como Novo Constitucionalismo Latino-Americano9. Esse movimento reivindicava o reconhecimento de uma diversidade de interpretações jurídicas, que respeitassem as cosmovisões das comunidades originárias, em resposta às violações de direitos promovidas por empresas extrativistas (mineradoras e petroleiras) em seus territórios, sob a justificativa do desenvolvimento sustentável.

Nesse contexto de forte mobilização popular e possibilidade de alteração constitucional, com atenção à pluralidade de visões e cosmovisões, o Equador (2008) e a Bolívia (2009) reconheceram nas suas constituições a importância da harmonia com a natureza e a necessidade de sua proteção ao nível nacional. Juridicamente, esse reconhecimento ficou conhecido como Direitos da Natureza, ou seja, a natureza como sujeito de direitos e não como objeto, detentora de personalidade e necessidade de proteção equiparada à do ser humano.

Os Direitos da Natureza representam uma subversão do Direito Ambiental tradicional, transferindo a proteção e representação do meio ambiente do Estado e das instituições governamentais – que frequentemente defendem interesses empresariais – para as comunidades que vivem em harmonia com a natureza. Essa interpretação reconhece a Terra como detentora de direitos que devem ser protegidos legalmente, garantindo que as gerações presentes e futuras possam desfrutar dela. O objetivo é impedir que o desenvolvimento humano e o crescimento econômico justifiquem a destruição de nascentes, florestas, rios e outros recursos naturais.

Foto: Vitor Nisda

O Direito, no entanto, tem sido usado como ferramenta por aqueles que detêm poder: empresas privadas, agronegócio e grandes corporações, com seus lobbies e escritórios de advocacia, todos voltados para o extrativismo que serve aos interesses capitalistas. Essa exploração desenfreada destrói recursos naturais, persegue e assassina povos originários, comunidades tradicionais e defensores do meio ambiente.

Um dos objetivos da estratégia jurídica dos Direitos da Natureza é conceder legitimidade aos verdadeiros defensores da natureza – povos indígenas, comunidades tradicionais (quilombolas e ribeirinhas) e organizações da sociedade civil – para representar a natureza e seus direitos, constantemente violados por aqueles que deveriam protegê-la.

Atualmente, essa nova interpretação está sendo implementada na legislação de alguns países. No Equador e na Bolívia, ela foi incorporada às constituições.  Na Nova Zelândia, em 2017, o Rio Whanganui foi reconhecido como sujeito de direitos, seguido pelo Monte Taranaki em 2025. No Brasil, há iniciativas semelhantes. Em 2017, o município de Bonito (PE) incluiu essa visão em sua Lei Orgânica10. Outras cidades brasileiras também possuem iniciativas semelhantes, como Paudalho (PE), Cáceres (MG), Florianópolis (SC), entre outras. No âmbito Federal, a deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) e o Partido Verde apresentaram propostas de Emenda à Constituição (PEC) para o reconhecimento da natureza como sujeito de direitos.

O modelo de implementação e gestão dos Direitos da Natureza no Brasil segue o modelo neozelandês, que sugere a criação de um “comitê guardião”. Esse comitê é formado majoritariamente por pessoas da comunidade que se relacionam diretamente com o Ser natural, possibilitando que as comunidades tradicionais – que, em sua maioria, são compostas por mulheres e pessoas periféricas que possuem uma relação intrínseca com o meio ambiente em diversas esferas: emocional, religiosa e econômica – tenham direito à voz, gestão, fiscalização e deliberação sobre possíveis violações ou alternativas de restauração do Ser natural impactado.

O conhecimento ancestral e as cosmovisões indígenas possuem o compromisso de rompimento com a dominação colonial, que está empenhada na destruição da terra, dos seres vivos e consequentemente dos seres humanos. A interpretação subversiva por meio da compreensão da Mãe Terra como um ser vivo desloca para a centralidade a necessidade da participação ativa e deliberativa da comunidade que historicamente ocupa o território, ou seja, terra e povo intrinsecamente interligados e são eles os detentores de sua representação, já que possuem uma relação direta com o Ser natural. 

Esse formato de interpretação jurídica pode parecer distante e, atualmente, apresenta diversas dificuldades e críticas em sua implementação nos países que o adotaram. No entanto, é uma alternativa, um movimento de fé e esperança no futuro e principalmente de respeito e escuta ao conhecimento, à tecnologia ancestral dos povos e das comunidades tradicionais que continuam defendendo e resistindo, articulando e encontrando estratégias para a preservação e continuação da vida. 


  1. Informação disponível em:<https://www2.recife.pe.gov.br/noticias/28/05/2022/nota-balanco-das-chuvas> acesso em: 12 mar 2025 ↩︎
  2. Informação disponúvel em: <https://www.folhape.com.br/noticias/maior-tragedia-do-seculo-em-pernambuco-mortes-pelas-chuvas-de-2022/228963/> 12 mar 2025 ↩︎
  3. Informação disponivel em: <https://atlasdigital.mdr.gov.br/paginas/mapa-interativo.xhtml ↩︎
  4. https://www.nbcnews.com/science/environment/2022-was-year-drought-rcna62410 > acesso em 13 mar 2025 ↩︎
  5. Termo utilizado para se referir ao momento que o ser humano se tornou a principal força de degradação ambiental e o vetor de ações que podem gerar impactos catastróficos ao planeta e para a vida de diversas espécies do planeta.  ↩︎
  6. Visão ou abordagem que coloca o ser humano como o centro e a medida de todas as coisas, priorizando suas necessidades e interesses acima de outras formas de vida ou do meio ambiente. ↩︎
  7. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.  ↩︎
  8. O termo “zonas de sacrifício” refere-se a áreas geográficas que sofrem danos ambientais significativos ou desinvestimento econômico, frequentemente devido à concentração de empreendimentos poluentes ou atividades indesejadas (KNOX; FERREIRA, 2023). ↩︎
  9. O Novo Constitucionalismo Latino-Americano é um movimento jurídico e político que busca reformular o Estado, reconhecendo a diversidade cultural e promovendo a participação popular, especialmente de grupos historicamente marginalizados, como indígenas e afrodescendentes. ↩︎
  10. A Lei Orgânica é a norma fundamental que organiza a estrutura administrativa e política de um município ou do Distrito Federal, funcionando como uma “Constituição local”, em conformidade com a Constituição Federal. ↩︎


Links de referências utilizadas 

https://openrivers.lib.umn.edu/article/when-a-river-is-a-person-from-ecuador-to-new-zealand-nature-gets-its-day-in-court/

https://theconversation.com/three-rivers-are-now-legally-people-but-thats-just-the-start-of-looking-after-them-74983?sr=3

https://www.poder360.com.br/opiniao/direitos-da-natureza-chegam-ao-1o-rio-do-pais-e-terao-forum/

https://www.scielo.br/j/mana/a/bjBknT5rNzkS7wvwyHKDzPw/?lang=pt

https://mapas.org.br/os-direitos-da-natureza

https://www.nexojornal.com.br/externo/2025/01/07/natureza-meio-ambiente-justica-sujeito-de-acao-e-direito

https://www.projetoruptura.org/post/5o-munic%C3%ADpio-brasileiro-reconhece-direitos-da-natureza#:~:text=Nesse%20sentido%2C%20os%20direitos%20da,de%20Guajar%C3%A1%20Mirim%2C%20em%20Rond%C3%B4nia.

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj774gyzzkdo

https://cbhvelhas.org.br/novidades/direitos-da-natureza

https://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_informativo/bibli_inf_2006/Rev-FD-UFG_v.43.08.pdf

https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2019/09/03/constitucionalismo-latino-americano-e-estado-plurinacional/

Knox, W., & Ferreira, J. G. (2023). Desastre ambiental e zonas de sacrifício: o derramamento de petróleo no Nordeste do Brasil e políticas públicas de estado. Revista Da ANPEGE. https://doi.org/10.5418/ra2022.v18i37.16273

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