Por Helô D’Angelo e Heloisa Aun, na Revista Fórun
Flávia* odiava ir às aulas práticas da autoescola. No início, quando conheceu o instrutor, teve uma boa impressão: achou o homem simpático e solícito. A partir da segunda aula, porém, ao conversarem mais e terem mais contato, as coisas passaram a incomodá-la. As conversas se tornaram cada vez mais pessoais e invasivas, com perguntas íntimas sobre sua vida amorosa. “Ele tinha idade para ser meu pai”, lembra.
Constantemente, o instrutor fazia comentários de conotação sexual sobre sua roupa e seu corpo. Em certos dias, ele dizia que gostaria de parar a aula para “ficar” com ela no banco de trás do carro. “Ele falava que eu era a aluna mais bonita e ‘gostosa’ que ele já teve, e que não conseguia me ensinar nada porque não parava de me olhar”. No decorrer dos encontros, as frases continuaram, com conteúdo cada vez mais invasivo. “Ele contava que pensava em mim quando estava em casa em momentos íntimos com a esposa”.
Apesar da recusa e dos sinais de desconforto da aluna, o instrutor insistia em pedir para beijá-la no banco de trás do veículo. Afirmava que ela não iria se arrepender, que seria diferente de tudo que já havia experimentado com os “novinhos” de sua idade. Nessas horas, ela gelava, dizia que não queria, que não podia, que não dava. A pressão e a insistência, no entanto, continuavam. Ela só queria que aquilo terminasse logo. Até hoje, Flávia teme encontrá-lo nas ruas de seu bairro, com medo do que ele possa fazer.
O caso acima relatado não é uma exceção – e muito menos parte de uma minoria. Em autoescolas do Brasil inteiro, milhares de garotas são vítimas de algum tipo de abuso, seja ele de caráter sexual, moral ou psicológico, por instrutores das aulas práticas. Em pesquisa** realizada online com 1,6 mulheres, majoritariamente da região sul e sudeste do Brasil, 63% (mais de mil participantes) relatam a ocorrência de pelo menos algum dos tipos de assédio durante o treinamento nestas instituições. As histórias, contadas em anonimato, revelam traços e comportamentos em comum: passadas de mão, cantadas, insinuações, comentários de cunho sexual, pressão psicológica, desrespeito e humilhação. A liberdade das alunas frequentemente é cerceada, e o espaço de cada uma, invadido, como lembra a ex-aluna Clara*: “Meu instrutor falava tanta besteira que, enquanto ele dirigia, eu fingia que estava dormindo. Em uma dessas vezes, ouço um clique da câmera do celular: ele estava tirando uma foto minha”.
Cinto sem segurança: as vítimas e a cruel realidade
Quando se trata de autoescolas, é comum falar da burocracia que envolve o processo de aquisição da carteira de motorista ou da corrupção que circunda o meio. No entanto, pouco ou nada se fala sobre os abusos sexuais que são frequentes nas aulas de direção. Basta perguntar por aí: a maioria das pessoas conhece histórias como as de Flávia e Clara, mais ou menos com o mesmo teor e as mesmas características, e provavelmente com o mesmo final – a aluna aguenta os abusos com medo de denunciá-los, passa na prova e “deixa para lá”, quase sempre traumatizada demais até para dirigir. De fato, a questão é tão pouco discutida que o próprio Detran não tem registros do número de assédios, até porque as denúncias são raras: entre as jovens entrevistadas, apenas 9% afirmam ter reclamado nas autoescolas sobre o comportamento dos instrutores.
Os números assustam, mas são reflexo da realidade. E a realidade é obscura e violenta, como mostra a história de Júlia*, uma das mais alarmantes. Enquanto fazia suas aulas de direção, ela foi coagida a ter relações sexuais com seu instrutor, sob ameaça de não passar no exame. “Ele disse que não ia me deixar fazer a prova. E eu não tinha dinheiro para fazer mais aulas”, lembra ela. O professor também a levava para outra autoescola e a obrigava a realizar sexo oral nele e em um outro instrutor: “Era horrível. Ele me estuprava dentro do próprio carro”. A jovem conta, também, que não foi a única. Segundo ela, outras meninas, conhecidas suas, passaram pelo mesmo processo com o mesmo instrutor, tudo acobertado por um sistema de chantagem, medo e culpabilização da vítima. Além de Júlia, outras 22 mulheres que responderam à pesquisa foram vítimas de violência sexual.
Assim como Flávia, Clara e Júlia, Mariana também está entre as mil mulheres participantes do estudo que sofreram algum tipo de abuso em autoescolas. Na segunda aula de direção, o instrutor que a acompanhava colocou a mão em sua coxa. Ela rapidamente a retirou: “Falei que não era assim, que aquilo era uma relação estritamente profissional. Ele ficou ‘puto’”. O homem passou a humilhar e perseguir a garota, afirmando que ela nunca conseguiria passar no exame. Neste momento, ele avançou e tentou beijá-la à força. Em choque, Mariana tentou empurrá-lo. Felizmente, naquele instante, um conhecido da jovem passava na rua e a ajudou.
Apesar da crueldade e da grande quantidade dos casos, pouco se divulga sobre as formas de proteção às alunas. Uma delas é a possibilidade de levar um acompanhante nas aulas práticas, tanto nas noturnas quanto nas diurnas, de acordo com o artigo 158, inciso 1º, do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em vigor desde 1997. Outra é a demissão do instrutor e o descredenciamento da autoescola, caso a denúncia seja confirmada (ver box). Há, também, casos em que as mulheres que foram vítimas de abuso conseguiram uma indenização do valor completo do processo de aquisição da CNH, apesar de estes serem minoria absoluta. No entanto, tudo fica por baixo dos panos: para conseguir acesso a qualquer uma dessas informações, a aluna precisa, muitas vezes, insistir, brigar ou pesquisar por si mesma.
No volante: quem se responsabiliza pelos abusos?
O Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP) orienta as candidatas à habilitação que sofreram abuso sexual a registrarem boletim de ocorrência para que a polícia tome as providências na esfera criminal, e também a denunciarem o caso à Ouvidoria do órgão, para que sejam tomadas as medidas administrativas cabíveis. Em nota oficial, o Detran enfatiza que “as denúncias são fundamentais para que os casos sejam apurados e os responsáveis, punidos”.
Segundo o comunicado, nas regras que regulam o credenciamento e a atuação dos diretores e dos instrutores, consta que “os candidatos devem ser tratados com urbanidade e respeito”. Para obter tanto o credenciamento, quanto a renovação da função, os instrutores e diretores devem apresentar certidões negativas de distribuição e de execução criminal. O órgão ressalta que qualquer condenação por crimes contra a dignidade sexual, como os assédios narrados anteriormente, impede a pessoa de credenciar-se ou renovar a atuação nas autoescolas.
O curso de formação de instrutores abrange questões relativas aos princípios éticos da relação entre instrutor e candidato ou condutor, e a direitos, deveres e responsabilidade civil destes profissionais durante as aulas de direção. Em 2015, foi lançado um Código de Ética do Detran-SP, distribuído aos funcionários e à rede de parceiros, no qual há itens específicos sobre os compromissos de conduta dos parceiros credenciados.
Sinal vermelho
É importante ressaltar, também, que 13% das entrevistadas (cerca de 210 meninas) relataram algum abuso por parte do examinador do Detran, além dos assédios dos instrutores, como lembra Giovana*: “No dia da prova prática, o examinador se aproveitou da situação para me cantar. Disse que gostava de mulheres como eu, com o meu tipo de corpo, e que por já estava ‘grandinha’, não tinha problema ele me dizer essas coisas, entre outras frases constrangedoras”. Carla* passou por algo parecido: “Estávamos todos no carro, esperando o início da prova. O examinador viu que minha amiga estava nervosa e a obrigou a dar seu número do telefone para ele. Depois, disse que trabalhava na delegacia e que ela poderia ir visitá-lo depois do exame”.