Arte sobre foto: Otávio de Souza/Wikipedia e 2
Paulina Chiziane carrega consigo muitos significados e lutas. Os leitores podem acompanhar os seus desafios como escritora e também como militante política no livro Balada de amor ao vento, uma das leituras obrigatórias do Vestibular da Fuvest de 2026. A obra, publicada em 1990, tornou-se um expoente internacional, pois Paulina é a primeira mulher a escrever um romance publicado em Moçambique abordando temas e normas sociais como a condição feminina, as tradições moçambicanas e a busca por liberdade.
“Em todas as suas obras, Paulina Chiziane sempre priorizou a escrita sobre mulheres, colocando-as como protagonistas e dando voz às suas inquietudes e pensamentos”, explica Stela Saes, professora e doutora em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas (FFLCH) da USP. “A escritora expõe suas incertezas e submissões em uma sociedade que, por vezes, valoriza as mulheres apenas como reprodutoras, mostrando as desigualdades de gênero e a opressão feminina em diferentes tradições e costumes.”
Stela Saes, que pesquisou a escritora em seu doutorado Trajetórias de mulheres em romances contemporâneos, destaca aos estudantes: “Paulina Chiziane é considerada a maior romancista do continente africano. Quando questionada sobre o teor das lutas perpetradas por sua literatura, não hesita em responder que, especialmente, estão dedicadas ao universo da mulher”. E lembra: “Apesar de não assumir a designação de feminista, grande parte de seus escritos orientam trajetórias feministas na forma como suas personagens, inspiradas em moçambicanas reais, buscam a emancipação das mulheres diante das opressões do sistema capitalista e patriarcal em diferentes regiões e épocas de Moçambique.”
Será uma história interessante? Tenho as minhas dúvidas, pois afinal não é nada de novo. Há muitas mulheres que vivem assim…”
Este questionamento está no primeiro capítulo do livro. E já revela a trama principal do livro que, segundo analisa Stela, é a imbricação entre os conflitos culturais e a opressão vivida pelas mulheres moçambicanas em meio a disputas ideológicas, culturais e políticas. “Essa, aliás, pode ser considerada o grande mote do projeto literário de Paulina Chiziane, tema sobre o qual aborda em outras obras posteriormente. Nesse livro, a autora já inicia o debate sobre a poligamia, que será mais aprofundado em um romance posterior”, analisa a pesquisadora. “O romance aborda diversos temas recorrentes na sociedade em que a história se passa, como a condição da mulher, os conflitos culturais, a relação entre a natureza e a ancestralidade.”
A professora explica que a escritora busca familiarizar o leitor com sua atmosfera de inspiração literária. “Ao passo que, a temática das relações amorosas, do abandono, decepção e maternidade, que são latentes em Balada de amor ao vento, tocam em aspectos universais e compartilhados por outras narrativas que dialogam com o romance de Paulina, apontando mulheres como protagonistas de suas próprias histórias e refletem sobre o ofício de escritora na contemporaneidade.”
Será uma história interessante? Tenho as minhas dúvidas, pois afinal não é nada de novo. Há muitas mulheres que vivem assim…”
Nesse dia mágico, entre os sonhos da protagonista Sarnau, começa a sua história de amor e dor. Quando vê Mwando ela logo se entrega à paixão. Paulina Chiziane descreve o encanto da personagem:
Minha mente deliciava-se com a imagem que acabava de descobrir. Aquele olhar distante, penetrante, aquela voz serena…e rosto sisudo!…Estaria eu apaixonada?”
Sarnau se entrega à paixão. “O enredo se concentra nessa história de amor, que se passa durante alguns anos entre encontros e desencontros. Por meio de uma narrativa poética, conduzida a maior parte do tempo pela própria protagonista”, observa a pesquisadora Stela Saes. “ Já no primeiro capítulo, os leitores se deparam com Sarnau mais velha. Mas, em recurso de flashbacks, a narrativa volta ao passado. Transporta os leitores à juventude de Sarnau, em Mambone, onde ela vive intensamente a paixão por Mwando. Seminarista e estudante de um colégio católico, Mwando representa a influência da cultura colonial e cristã, em contraste com as tradições nativas de Sarnau. Apesar de sua devoção religiosa, Mwando cede à paixão, e eles vivem um amor proibido, o que resulta na expulsão dele do seminário. ”
Por um tempo, os dois desfrutam um romance feliz. Mas Mwando, influenciado por sua fé cristã e por um casamento arranjado por seus pais, abandona Sarnau grávida, rejeitando a poligamia que ela estava disposta a aceitar.”
Mwando justifica:
Sarnau, o teu desejo não pode ser realizado. Nunca serás minha mulher, nem segunda, nem terceira, nem centésima primeira, Eu sou cristão e não aceito a poligamia”
“Os leitores vão acompanhar as decepções, os arranjos matrimoniais em diferentes culturas, o sentimento de abandono da mulher negra, os conceitos de casamento, monogamia e poligamia”, esclarece a pesquisadora. “De forma geral, Sarnau, desde o início, está condicionada a viver sob as tradições culturais do sul de Moçambique, enquanto Mwando, se adapta a uma cultura colonial e católica, de início no seminário para padres e, depois, com o desejo de viver um casamento de rituais cristãos.”
Após o abandono, Sarnau tenta o suicídio e, embora seja salva por um pescador, perde o bebê de Mwando. Em um salto temporal, ela é inesperadamente escolhida para ser a primeira esposa do príncipe Ninguila, futuro rei, recebendo um alto lobolo (dote) de 36 vacas virgens por parte de sua família. Sarnau inicialmente se encanta com a ideia de ser rainha e com a vida de luxo, mas logo se depara com a dura realidade da poligamia e da opressão feminina. Ninguila é violento, agressivo e a rejeita após o nascimento de suas filhas gêmeas.
Enquanto isso, a vida de Mwando também é narrada. Ele se casa com Zumbi em um casamento arranjado que fracassa, perde um filho e é traído e abandonado. Acaba deportado para Angola, onde cumpre trabalhos forçados, mas eventualmente prospera, tornando-se padre e adquirindo uma posição de respeito. Após 15 anos, retorna a Moçambique em busca de Sarnau.
Mwando e Sarnau se reencontram em Mafalala, onde ela vive precariamente, tendo se prostituído para conseguir o dinheiro necessário para devolver o lobolo de seu casamento com Ninguila. Embora Sarnau o confronte amargamente sobre o passado, a paixão entre eles renasce. Ela engravida novamente de Mwando, mas esconde o adultério de Ninguila, que acredita ser o pai do filho varão que tanto desejava. A esposa favorita de Ninguila, descobre o caso e denuncia Sarnau ao rei, que decide aplicar uma prova fatal.
Para proteger sua vida e a do filho, Sarnau foge com Mwando para a ilha de Bazaruto, abandonando suas outras filhas com Ninguila. A vida na ilha é difícil, e Mwando, mais uma vez, abandona Sarnau, agora grávida novamente, após ser perseguido e, eventualmente, deportado para Angola por se envolver com uma mulher casada.
Anos depois, Mwando, já livre e bem-sucedido, retorna a Moçambique e finalmente reencontra Sarnau em Mafalala. Ele tenta reconquistá-la, revelando-se aos filhos dela (incluindo uma filha, fruto do segundo relacionamento entre os dois) e se colocando como pai das filhas que Sarnau criou praticamente sozinha.
“A ideia que passa ao leitor é que Sarnau aceita Mwando de volta, mas não é simplesmente isso que acontece”, esclarece a professora Stela. “Mwando vence o contrato social que é imposto a essa mulher que precisa de um amparo. Então ela aceita o Mwando de volta porque ele se coloca como pai dos filhos e ela precisa daquele auxílio para poder criá-los. Então não é um retorno ao amor, mas um retorno a uma sociedade que coloca as mães e as mulheres em uma situação de extrema vulnerabilidade social. ”
Entre idas e vindas, a trama principal do livro pode ser considerada a imbricação entre os conflitos culturais e a opressão vivida pelas mulheres moçambicanas em meio a disputas ideológicas, culturais e políticas. “Essa, aliás, pode ser considerada o grande mote do projeto literário de Paulina Chiziane, tema sobre o qual outras de suas obras abordam posteriormente”.
Com a poligamia, com a monogamia, ou mesmo solitária, a vida da mulher é sempre dura”
“É importante que o leitor não seja alguém que julga Sarnau, mas sim alguém que acompanhe sua trajetória para entender como essa personagem passa por tantas dificuldades, problemas e violências ao longo de sua vida. O que faz com que essa mulher esteja nesse lugar tão vulnerável da sociedade”, orienta a professora Stela Saes.
Paulina Chiziane nasceu no dia 4 de julho de 1955, filha de um alfaiate e uma camponesa, cresceu em um ambiente marcado pelos relatos da ocupação colonial e da luta armada pela independência de Moçambique. Aprendeu a língua portuguesa em uma escola católica e chegou a cursar Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, embora não tenha concluído.
Durante sua juventude, Paulina Chiziane militou ativamente na Frelimo, participando da guerra de independência. Contudo, ela se afastou da política por desilusão com as diretrizes do partido pós-independência. Suas decepções incluíam as políticas filo-ocidentais, ambivalências ideológicas internas e, em particular, as posições do partido sobre monogamia e poligamia, bem como suas hipocrisias, como um movimento político marxista-leninista, em relação à liberdade econômica da mulher.
Foi então que Paulina Chiziane se dedicou à escrita, buscando na literatura um espaço de liberdade para abordar as questões sociais de seu país. Iniciou sua atividade literária em 1984, publicando contos em jornais moçambicanos. Em 1990, fez história ao publicar “Balada de amor ao vento”, o primeiro romance escrito e publicado por uma mulher em Moçambique.
“A trajetória da protagonista Sarnau, nesse livro, por exemplo, é responsável por colocar em questão a relevância do papel social das mulheres para a reconstrução de um país recém-saído de uma guerra de desestabilização política”, enfatiza a professora Stela Saes.
Em 2002, Paulina publicou o romance Niketche: uma história de poligamia, que lhe rendeu o Prêmio José Craveirinha em 2003. Em 2021, a autora se tornou a primeira mulher africana a ser condecorada com o Prêmio Camões pelo conjunto de sua obra. A homenagem é entregue, em parceria entre os governos brasileiro e português, a autores que tenham enriquecido o patrimônio literário e cultural da língua portuguesa.
“Balada de amor ao vento” foi publicado por Paulina Chiziane, em 1990, 15 anos após a independência de Moçambique de Portugal, em 1975, e foi lançado em um contexto de declínio da luta armada pós-independência. O período antecedeu os Acordos de Paz de 1992, que formalizaram o fim da guerra civil entre a Frelimo e a Renamo (Resistência Nacional Moçambicana).
“Ao publicar esse texto, Paulina relembra as promessas da Frelimo durante a luta anticolonial e coloca em foco as reivindicações das mulheres moçambicanas, para as quais as esperanças, sonhos e planos de uma nação só se materializarão quando houver condições sociais que realmente favoreçam a igualdade de direitos e condições entre homens e mulheres como cerne de uma política nacional”, explicou Stela.
Assim, a obra não é apenas um romance, mas um profundo reflexo das tensões sociais e culturais da época. Com sua narrativa especialmente feminina, a obra prioriza o olhar, as experiências, os desejos e as frustrações das mulheres moçambicanas, questionando a condição de inferioridade e a submissão a que muitas vezes são submetidas.
A prosa de Paulina Chiziane consegue abarcar diversos temas relevantes para refletir sobre a sociedade moçambicana de forma integrada ao enredo, sem recorrer a interpretações folclóricas dos costumes. Todas as reflexões promovidas sobre as mulheres, os conflitos culturais e a relação entre natureza e ancestralidade são partes essenciais das vivências e trajetórias das personagens.
“Essa é uma característica fundamental da prosa de Paulina: ela sempre busca familiarizar o leitor com sua atmosfera de inspiração literária. Ao mesmo tempo, a temática das relações amorosas, do abandono, da decepção e da maternidade, que são latentes em “Balada de amor ao vento”, toca em aspectos universais, compartilhados por diversas outras narrativas que dialogam com o romance de Paulina, aquelas que colocam mulheres como protagonistas de suas próprias histórias e refletem sobre o ofício de escritora na contemporaneidade”, explica a pesquisadora.
As desigualdades de gênero são constantemente expostas na obra, como no trecho em que a tia da protagonista a alerta sobre seu futuro como mulher:
Sarnau, o lar é um pilão e a mulher, o cereal. Como o milho, serás amassada, triturada, torturada, para fazer a felicidade da família. Como o milho, suporta tudo, pois esse é o preço de tua honra”
A forma como a mulher é submetida e subjugada em diferentes tradições, costumes e esferas sociais é constantemente questionada pela narradora ao longo do enredo. Além disso, o romance traz discussões relevantes sobre a colonização e a luta anticolonial em Moçambique, permeadas por reflexões sobre religião e embates culturais.
“A dica principal para os vestibulandos acredito que seja não perder de vista que o livro foi escrito por uma autora moçambicana e representa uma parte e uma visão da história e da cultura desse país”, alerta a professora.
Ela também chama atenção para os potenciais de interdisciplinaridade com outras ciências humanas: “O texto destaca a oposição geográfica e cultural entre Mambone e Mafalala, dois locais importantes na trajetória da protagonista, refletindo diferenças de urbanização e colonização em Moçambique. O romance também dialoga com a história recente do país, evocando paralelos com a colonização portuguesa no Brasil.”
“Balada de amor ao vento” não é o primeiro livro de Paulina Chiziane a aparecer nas listas de leituras obrigatórias dos vestibulares. A autora tem sido presença frequente em diversos processos seletivos, o que “fomenta, inclusive, novas edições de suas obras, algo que, até alguns anos atrás, era um fator que dificultava o acesso aos seus textos, que não chegavam ao Brasil com tanta facilidade ou rapidez”, afirma Stela Saes.
O próprio “Balada de amor ao vento”, embora tenha sido o primeiro romance escrito por Paulina, não foi o primeiro a ser lançado no Brasil, “Ventos do Apocalipse” chegou antes ao País.
A autora tem como marca registrada em suas obras a crítica social e a abordagem de temas latentes na sociedade, que até hoje são amplamente debatidos, como os direitos das mulheres, a não monogamia e os conflitos culturais e religiosos. “Embora situado em Moçambique, o livro aborda essas questões de forma que a história de Sarnau dialogue com diversas outras narrativas em diferentes contextos. Paulina é reconhecida mundialmente por sua obra”, observa a professora Stela. “Seus livros seguem extremamente atuais, mantendo diálogo tanto com a realidade moçambicana quanto com a brasileira.”