Crédito: Vitor Coelho Nisida
A problemática em torno do direito à moradia no Brasil remonta a um longo histórico de impedimentos e dificuldades ao acesso à terra pela população negra. Na dinâmica da urbanização brasileira, temos a marca do racismo antinegro1 como estruturante da divisão do espaço na cidade, refletindo diretamente sobre a distribuição de equipamentos públicos, mobilidade urbana, criminalização das ocupações urbanas, genocídio da população negra e demais consequências2.
Quanto à lógica de distribuição do espaço urbano, Alves3 denuncia que “alguns corpos e alguns territórios racializados recebem a preferência na distribuição das chances de vida e de morte.” E Flauzina e Pires4 (2021, p. 82) complementam que “a questão habitacional urbana no Brasil é pensada a partir de uma visão que tem a letalidade no centro de sua estrutura”. Perfaz-se assim, uma dualidade entre cidade negra e cidade branca.
Tradicionalmente, o conceito de conflito fundiário urbano envolve a disputa pela posse ou propriedade de um imóvel urbano e os impactos gerados por empreendimentos públicos ou privados, envolvendo grupos sociais vulneráveis ou famílias de baixa renda5. No entanto, faz-se necessário compreendê-lo como resultado de um modelo excludente de distribuição do espaço urbano, que precisa ser analisado sobre a perspectiva da interseccionalidade, compreendendo as encruzilhadas das avenidas identitárias6 sobre os indivíduos.
A insegurança da posse é um importante fator de vulnerabilidade das ocupações urbanas e uma forma deliberada do Estado de expulsar a população de determinado território, seja por meio de remoções autoexecutadas7 pelo Estado, em que o Estado executa os despejos sem ordem judicial ou processo administrativo que assegure o contraditório, seja pela negativa em regularizar ocupações populares.
A Rede Nordeste de Monitoramento e Incidência em Conflitos Fundiários – Rede Nordeste, vinculada ao Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, com atuação os Estados da Bahia, Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte, se debruçou sobre diversos casos em que o Poder Público era o agente promotor das remoções forçadas. Esse tipo de remoção agrava um sentimento de insegurança da posse, pois com mera ordem administrativa diversas pessoas têm sua moradia vulnerabilizada, amanhecendo com a presença da polícia e/ou guardas municipais com ordem de remoção efetivadas de forma violenta.
Essa prática também é visível ao observar as Ocupações no Centro Antigo de Salvador, formada por pessoas majoritariamente negras, que apesar de terem nascido e crescido neste território, não têm sua posse regularizada. E, quando há a propositura de política habitacional voltada a essa população, não é garantido o direito à permanência no território.
Os desdobramentos da insegurança da posse também podem ser vistos no caso da Comunidade Tororó, localizada na também na área central de Salvador, próximo a maior estação de ônibus e metrô da cidade, que foi afetada pelo Plano Diretor Urbano de Salvador de 2016 como Zona Especial de Interesse Social – ZEIS 18 destinada à habitação da população de baixa renda, visando a promoção de habitação de interesse social. No entanto, o Município de Salvador propôs ação de reintegração de posse contra os moradores da Rua Monsenhor Rubens Mesquita e Rua Futuro do Tororó alegando existir interesse público na construção de uma obra pública. A partir da denúncia dos movimentos sociais, verificou-se que a suposta obra pública visava a implementação de um shopping center com quatro pavimentos no prédio principal e um anexo de serviços. Neste caso, com a intervenção judicial, foi garantida a indenização pelas benfeitorias dos imóveis, mas foi concedida a reintegração de posse ensejando a remoção de diversos moradores deste território. Logo, a área afetada e destinada a assegurar a moradia e garantir a regularização das habitações existentes deu lugar à construção de um empreendimento privado.
Das práticas descritas, verifica-se que é na cidade negra, marcada pelo o racismo antinegro, que a insegurança da posse se perfaz e que, mesmo quando há previsão legal, não há interesse estatal na implementação dos instrumentos urbanísticos, que garantam a moradia, a permanência e o trabalho no território. Enquanto na cidade branca, onde há título de propriedade, há regularização fundiária, há distribuição de equipamentos públicos à disposição da população.
Ainda, é sabido que a violência não é um elemento novo na vida das pessoas negras. Vilma Reis9 (2005) já nos alertara que “sob a tocaia do Estado, não podemos viver a não ser em sobressaltos”. Há uma imbricação entre as políticas de segurança pública e o planejamento e gestão urbana. A violência é utilizada como forma de qualificar e descrever os territórios, seja através da taxação de áreas e consequentemente sujeitos perigosos, seja mediante remoções forçadas efetivadas com diversas violências determinando quem pode e deve morar, circular e viver em determinado território.
Merece destaque que, se antes os conflitos fundiários urbanos tinham como fatos geradores a disputa pela posse e propriedade, promovida por agentes públicos e privados. Agora, se somam outras imbricações atuando como agentes mobilizadores de remoções forçadas, como aumento da violência nos territórios urbanos através da intensificação de confrontos armados de facções e milícias que envolvem disputa de poder e território, bem como a atuação das forças de repressão do Estado através de práticas violentas que geram a perdas de inúmeras vidas negras.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 202410 aponta que no Nordeste, a taxa de Mortes Violentas Intencionais é 60% superior à média nacional e indica como causa a combinação de fatores entre as disputas de facções por rotas e territórios, e, a concentração de estados com alta letalidade policial.
É nesse cenário disputa de território e a violência exarcebada contra corpos negros, que a população negra convive com a negação de direitos, onde a regra é a violabilidade dos corpos, onde não é necessária a ordem judicial para adentrar em suas moradias, onde há intenso controle sobre a liberdade de ir e vir. É nesta cidade negra, que como narrado por Emicida em Ismália, “80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo11”.
Partindo da dororidade12, conceito cunhado por Vilma Piedade, que aduz sobre as dores, ausências e faltas criadas pelo racismo, as mulheres negras, maior parte das lideranças de movimentos sociais urbanos, têm construído redes de permanência em seus territórios, construindo uma teia contra-hegemônica de resistir, reinventar e viver, resistindo às ofensivas de genocídio, síntese apresentada por Conceição Evaristo, na qual, diz em Olhos D’Água que “a gente combinamos de não morrer13”.
Ariana Ferreira de Alencar Moraes – Advogada. Mulher negra. De axé. Pesquisadora da Rede Nordeste de Monitoramento e Incidência em Conflitos Fundiários Urbanos no Estado da Bahia vinculada ao Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico. Pós Graduanda em Criminologia (Gran Faculdade) e Jurisprudência Penal (Curso CEI). Pós Graduada em Direito Processual Penal (Curso CEI) e Direito Constitucional (Faculdade Legale). Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
e-mail: arianalencar@gmail.com.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2216570475287174.
ORCID: https://orcid.org/0009-0009-4468-484X
Referências Bibliográficas
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BERTH, Joice. Se a cidade fosse nossa: Se a cidade fosse nossa: racismos, falocentrismos e opressões nas cidades.
CONSELHO DAS CIDADES. Resolução Recomendada nº 87, de 08 de dezembro de 2009. Recomenda ao Ministério das Cidades instituir a Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos. Diário Oficial da União. Brasília, DF, n. 98, 25 mai. 2010, Seção 1, p. 88-90.
EVARISTO, Conceição. A gente combinamos de não morrer. In: Olhos D’Àgua, Pallas Editora, 2016.
FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula. Políticas da morte: Covid-19 e os labirintos da cidade negra. In: Revista Brasileira de Políticas Públicas. Vol. 10, nº 2, ago. 2020. DOI: 10.5102/rbpp.v10i2.6931.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/253. Acesso em maio de 2025.
MACEDO JÚNIOR, Gilson Santiago (org.). Remoções forçadas no Nordeste: análise de conflitos fundiários urbanos e incidência na Bahia, no Ceará, em Pernambuco e no Rio Grande do Norte no ano de 2023.
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REIS, Vilma. Atucaiados pelo Estado: as políticas de Segurança Pública implementadas nos bairros populares de Salvador e suas representações, 1991 – 2001
VARGAS, João H. Costa. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Revista em Pauta, Rio de Janeiro, v. 18, n. 45, p.16-26, 2020