Mulher Negra

Cidinha da Silva: ‘Autores brancos são superestimados na cena literária’

Quando Cidinha da Silva empunha a palavra, o mundo se desnuda de máscaras e armaduras: toda hierarquia prontamente se dissolve sob sua inexorável escrita. Ao revelar universos escondidos sob camadas de pó e privilégio, ela devolve ao centro quem sempre foi empurrado para as margens. Autora de contos, crônicas, poesia e teatro, ex-presidente do Geledés – Instituto da Mulher Negra e fundadora do Instituto Kuanza, ela acaba de lançar Só Bato em Cachorro Grande, do Meu Tamanho ou Maior: 81 Lições do Método Sueli Carneiro (Rosa dos Tempos; 208 págs.; R$ 59,90).

E, a esta coluna, a autora revela também que prepara dois novos livros de memórias: Para Nós, Nunca Houve Tempo Bom, Não Pode Haver Tempo Ruim (Patuá) e Quando Borboletas Furiosas se Tornam Mulheres Negras: Nós no Mercado Editorial (Relicário).

Você escreve mais para buscar respostas ou estimular dúvidas?
Escrevo para oferecer as minhas respostas que, por sua vez, podem estimular dúvidas.

Escolha um autor clássico e um contemporâneo para criticar seu trabalho.
Lima Barreto e Ana Maria Gonçalves.

Se seus personagens ganhassem consciência, eles se revoltariam contra seu criador?
Penso que sim. Toda boa criatura em algum momento se revolta contra a criadora. A criação também tem dimensões autoritárias.

Qual é a cara do romance contemporâneo?
Feito por autores e autoras brancos, de classe média ou alta, papa-prêmios literários, paulistas, cariocas, gaúchos ou paranaenses, focados em angústias dos viventes dos grandes centros urbanos, parecidos com eles e elas. Mas tem uma moçada contando outras histórias, colocando a cara no sol, a exemplo de Lília Guerra, Luciany Aparecida, Tatiana Nascimento, Andressa Marques, Eliane Marques e Taiasmin Ohnmacht, além de José Falero e Geovani Martins, para também mencionar dois homens.

Cite um autor superestimado e um subestimado.
Tatiana Nascimento é subestimada. Não citarei nomes de autores superestimados para não criar mais problemas para a minha cabeça, mas posso compor um perfil: citadino, branco, de classe média ou alta, acostumado a se movimentar num clube fechado e autorreferente, que produz toda forma de legitimação imaginável para os membros da agremiação e que na rodinha de pares reclama do espaço que aqueles escritores e escritoras que ele chama de identitários têm ganhado na cena literária, comendo quinhões do bolo e recusando migalhas.

Que personagens literários escolheria para serem seus pais?
Kadja e Tidjane, personagens do escritor malinês Amadou Hampâté Bâ.

Em que universo literário viveria por um ano?
No Norte de África, entre o povo nômade Tuaregue, os homens e mulheres azuis do deserto.

Que canção ou obra de arte gostaria que fosse um livro?
“Dança dos Meninos”, de Milton Nascimento.

Só Bato em Cachorro Grande, do Meu Tamanho ou Maior: 81 Lições do Método Sueli Carneiro — Foto: Divulgação

Que leitura recomendaria ao presidente da República?
Dois livros meus: Parem de Nos Matar! Só Bato em Cachorro Grande, do Meu Tamanho ou Maior: 81 Lições do Método Sueli Carneiro. O primeiro porque tem muita coisa ali que ele precisa conhecer mais e o segundo porque acho que ele se reconheceria na leitura e se divertiria com ela.

Que aspecto da realidade ou acontecimento do noticiário recente mais te parece ficção?
Um homem negro correndo para alcançar um ônibus é alvejado na cabeça por um policial. São muitas as histórias fantásticas que acometem as pessoas negras e lhes rouba a vida, tendo por executores aqueles que deveriam protegê-las.

A literatura serve mais para entender o mundo ou escapar dele?
Como escritora, serve para criar mundos e colocá-los para jogo. Como leitora, serve para conhecer mundos e dialogar com eles.

O que está escrito no epílogo da sua vida?
Viveu para/pelo trabalho, o nome possível do amor.

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