“Eu ficava levando bofetada na cara e vendo o meu sangue escorrer quando ele cortava meus dedos”, contou Joana*, 46 anos. Ao longo de 8 anos de relacionamento, ela sofreu agressões físicas, sexuais e psicológicas do marido. Sozinha, passou por cima do sentimento de derrota e de vergonha para denunciá-lo à Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam), há alguns meses. O pedido de separação incomodou o homem “violento e perigoso”. O medo da reação do ex-companheiro levou a mulher a pedir o arquivamento da ação que começara a tramitar na Justiça. Desde então, o marido não voltou a procurar Joana e os dois filhos que ela teve em outro casamento. “Os homens querem apagar a luz linda que é a mulher. Estão querendo destruir e pisar na rosa. E nós, mulheres, não podemos nos dar ao luxo de botar na cara o que se passa dentro da gente”, desabafou, ontem, no Dia Internacional pelo Fim da Violência Contra a Mulher.
Por: Juliana Boechat
Como Joana, outras 4.653 mulheres registraram ocorrência de violência doméstica nos primeiros seis meses deste ano. Significa dizer que a cada hora, de janeiro a junho, uma mulher procurou uma delegacia do Distrito Federal para prestar queixas do companheiro. Números do Pró-Vítima, programa ligado à Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, mostram que a média se manteve em relação a 2009, quando 9.597 mulheres buscaram apoio — aproximadamente 26 por dia. Mas os valores aumentaram em cerca de 35% se comparados aos de 2008. Naquele ano, 7.100 casos foram registrados pela Polícia Civil do DF. A subsecretária de Proteção às Vítimas de Violência, Valéria Velasco, acredita que as mulheres estão perdendo o medo de denunciar as agressões sofridas entre quatro paredes. “Elas sabem que têm respaldo da Justiça e da polícia”, defendeu.
Sancionada em 2006, a Lei Maria da Penha garantiu direitos às mulheres e determinou punições a homens agressores. Até então, não havia legislação específica sobre o tema. Há quatro anos, as mulheres não podem mais desistir da investigação aberta contra o companheiro na delegacia — sendo permitido recuar apenas na frente do juiz, como fez Joana. O autor das agressões pode ser preso em caráter preventivo ou em flagrante. Caso seja denunciado por violência à mulher, o homem ainda corre o risco de perder o direito de se aproximar da vítima com limite máximo de distância fixado pelo juiz responsável pelo caso; de ser proibido de frequentar alguns lugares; e de ser obrigado a se afastar de casa e dos dependentes. Segundo a Polícia Civil, o Distrito Federal conta com o maior número de registros em relação ao restante do Brasil.
Para Valéria, o número tende a aumentar com a capacitação do Estado em receber as vítimas e oferecer a elas o acompanhamento necessário. Atualmente, a única delegacia especializada no atendimento à mulher está localizada na Asa Sul. A distância do restante do DF impede pessoas de denunciar os maus-tratos. “As vítimas também podem ir às delegacias nas cidades, mas acabam intimidadas por serem ambientes naturalmente machistas”, explicou. Essa situação dificulta o trabalho das entidades que lutam contra a violência doméstica em Brasília. Segundo a delegada-chefe adjunta da Deam, Adriana Aguiar, apenas 40% das vítimas recorrem contra o agressor. “Muitas arquivam o processo ou fazem acordos. Acreditam que eles vão melhorar e que tudo vai voltar ao normal. Mas sabemos que não é assim”, explicou.
O gerente de Referência do Atendimento às Mulheres da Sejus, Luiz Henrique Machado e Aguiar, explicou que o tabu familiar também impede a mulher de registrar a ocorrência contra o companheiro. Muitas vítimas, segundo ele, questionam se mereciam a agressão e quais motivos a levaram àquela situação. “Às vezes, ela depende do homem financeiramente, ou ele é pai dos filhos e tem laços afetivos. A dependência emocional é complexa e o crime não é comum. Por isso a necessidade de profissionais capacitados para lidar com as vítimas de agressões. O assunto deve deixar o âmbito privado e chegar a público”, acredita. Ele cita Ceilândia, Gama, Recanto das Emas e Santa Maria como origem das demandas mais intensas.
Fonte: Correio Braziliense