“Depois do Desmonte”: relatório traz balanço dos gastos da União entre 2019-2022
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O desmonte das políticas públicas em todos os programas sociais e ambientais do Brasil, nos últimos quatro anos, segue custando caro ao País. Passados os 100 primeiros dias do mandato do presidente Lula, ainda é grande a dificuldade para superar o cenário de “terra arrasada” detectado no relatório de transição do governo, a despeito da injeção de recursos com a PEC aprovada no fim do ano passado.
A fim de registrar o impacto dos cortes de gastos em áreas fundamentais de proteção aos direitos humanos em uma gestão que privilegiou o equilíbrio fiscal em detrimento da vida e do bem-estar da população, o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) apresenta o relatório “Balanço Geral dos Gastos da União 2022”, que nesta edição recebe o título de “Depois do Desmonte”.
A publicação mostra como foram usados (ou não) os recursos federais nas áreas: saúde, educação, direito à cidade, meio ambiente, povos indígenas, quilombolas, igualdade racial, mulheres e crianças e adolescentes.
Superávit a que preço?
A principal conclusão do documento é de que a política de ajuste fiscal imposta nos últimos 4 anos não só se provou ineficiente para a recuperação da economia, como também aumentou a injustiça social, ambiental, climática, racial e de gênero. Pela primeira vez desde 2013, as contas públicas fecharam em superávit primário em R$ 54,1 bilhões. Mas a que preço? “A estratégia de subfinanciar o Estado, elevar a taxa de juros, ignorar uma tributação progressiva e percorrer regras fiscais restritivas só agravou as desigualdades”, respondem os membros do colegiado do Inesc, Cristiane Ribeiro, José Antônio Moroni e Nathalie Beghin.
Neste contexto, para cada uma das áreas analisadas, esta edição do Balanço aponta as medidas consideradas prioritárias para o governo Lula, começando pela análise das ações vinculadas à PEC de Transição. “A tarefa de reconstruir o Brasil não será fácil, pois o governo é o resultado de uma ampla aliança, que precisa acomodar interesses distintos, por vezes, antagônicos”, pondera Nathalie. “Este relatório servirá de base para o monitoramento da agenda voltada à proteção dos direitos humanos nos próximos anos.”
Panorama geral
No último ano do governo Bolsonaro, as contas públicas fecharam com um superávit primário de R$ 54,1 bilhões, o que corresponde a 20 vezes ao valor orçado para o Ministério do Meio Ambiente em 2022 (R$ 2,7 bilhões). Ou seja: uma economia feita à custa do desmatamento e desmonte de políticas de proteção à Amazônia.
As emendas de relator (RP9), conhecidas como “orçamento secreto”, alcançaram valores médios anuais de R$ 11,2 bilhões entre 2020 e 2022. O valor corresponde a cerca de 3 vezes o total gasto pelo governo anterior em programas de alimentação escolar.
Covid-19
O governo Bolsonaro entrará para um triste capítulo da história brasileira, que soma mais de 700 mil vítimas fatais, devido aos inexplicáveis atrasos no processo de vacinação e o vergonhoso saldo de R$ 159,3 bilhões, que, embora já estivessem autorizados pelo Congresso Nacional, não foram gastos a despeito da fome, do desemprego, fechamento de empresas e falta de estrutura das escolas para se adaptarem ao ensino virtual.
Saúde
Entre 2019 e 2022 o orçamento da função Saúde, retirando os gastos com Covid-19, diminuiu 8% em termos reais, apesar das demandas reprimidas e do aumento da população. É um valor que corresponde a R$ 12 bilhões a menos para a área, que já vinha sofrendo problema crônico de desfinanciamento imposto pelo teto de gastos.
Educação
Os recursos da função Educação caíram de R$ 131 bilhões em 2019 para R$ 127 bilhões em 2022, e a gestão ficou marcada por nenhum centavo direcionado às escolas em virtude do isolamento social decorrente da Covid-19.
Os recursos voltados para creches caíram 60% em termos reais entre 2019 e 2022, passando de R$ 470 milhões para R$ 187 milhões, no período, apesar do aumento de 70% entre 2021 e 2022 decorrente do “novo Fundeb”.
O orçamento para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) não só esteve aquém do necessário, como registrou um comportamento “errático”: de R$ 552 mil em 2019 (apesar de um valor autorizado superior a R$ 35 milhões), os gastos subiram para R$ 15 milhões em 2020 (devido a restos a pagar), voltando a cair para R$ 7,4 milhões em 2021. Em 2022, graças ao “novo Fundeb”, os valores foram de R$ 14,4 milhões, longe de ser suficientes para reduzir os efeitos da migração do ambiente físico para o ensino virtual na pandemia.
No ensino superior, os recursos caíram 18% em termos reais, passando de R$ 43,3 bilhões para R$ 35,4 bilhões, entre 2019 e 2022. A queda observada com a execução financeira da Capes é ainda maior: 39% no quadriênio, saindo de R$ 5,4 bilhões em 2019 para R$ 3,3 bilhões em 2022.
Direito à cidade
O déficit habitacional de 5,9 milhões de moradias foi agravado, não apenas pela pandemia, mas pela dificuldade de acesso da população de baixa renda ao Programa Casa Verde Amarela, que substituiu o Minha Casa Minha Vida. A execução financeira da função habitação caiu 37% em termos reais entre 2019 e 2022, passando de R$ 78,7 milhões para R$ 29,7 milhões no período.
Nos 4 anos do governo Bolsonaro, os recursos destinados para o transporte coletivo público caíram 65%, passando de R$ 1,3 bilhão em 2019 para R$ 468 milhões, em 2022.
Meio Ambiente
Em 2019, a execução financeira foi de R$ 3,3 bilhões, passando para R$ 2,7 bilhões em 2022, uma perda real de 17%.
Quem mais perdeu foi o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), com uma queda real de 32% nos quatro anos.
Na administração direta do Ministério, a execução financeira caiu 11,2% entre 2019 e 2022, passando de R$ 244 milhões para R$ 216 milhões, sem contar a destruição do Ibama, que perdeu 8% de seu precário orçamento (de R$ 1,8 bilhão para R$ 1,7 bilhão, em 2022). O desmatamento no governo Bolsonaro foi o maior no período de 15 anos.
Povos indígenas
A Funai se transformou numa verdadeira organização anti-indígena, com uma queda na execução financeira, de R$ 754 milhões para parcos R$ 640 milhões, entre 2019 e 2022, a despeito do crescimento populacional indígena no período. Se em 2010, o orçamento per capita da Funai era R$ 899/indígena, em 2022, esse valor chegou a R$ 400/indígena.
O número de servidores da Funai, para cada mil indígenas, caiu 68% no período.
Já os recursos para a Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, entre 2019 e 2022, caíram 9%, passando de R$ 1,8 bilhões para R$ 1,6 bilhões, o que explica os efeitos nefastos das epidemias, como o genocídio dos Yanomami.
Quilombolas
O racismo institucional do governo Bolsonaro excluiu quilombolas dos grupos prioritários de vacinação, sendo necessária a intervenção do STF, em 2021, para haver um plano específico de enfrentamento à pandemia nessas comunidades.
A regularização fundiária para territórios quilombolas foi desmontada, praticamente nenhum recurso foi gasto, com exceção de 2020 quando foi necessário pagar uma ação judicial.
O saneamento rural quilombola aumentou ao longo da gestão Bolsonaro (de R$ 120 milhões executados para R$ 252 milhões, em 2022), grande parte explicada pelos recursos vindos dos restos a pagar, acumulados no quadriênio – R$ 103,8 milhões em 2020, R$ 121 milhões em 2021 e R$ 217,3 milhões em 2022.
A distribuição de cestas básicas para quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais permaneceu em patamares extremamente baixos (R$ 19 milhões/ano) entre 2019 e 2021. Os gastos com cestas básicas só aumentaram em 2022, com um salto para R$ 298,4 milhões naquele ano.
Igualdade racial
Em 2019, a execução financeira da igualdade racial foi de R$ 18,2 milhões caindo para R$ 3 milhões, em 2020 até chegar a um patamar mínimo de R$ 231,1 mil em 2021. Em 2022, houve um aumento para R$ 6,9 milhões.
Mulheres
Em termos reais, os gastos voltados para as ações de enfrentamento a violência, promoção da igualdade e da autonomia das mulheres em 2019 se manteve no ano de 2022, com valores da ordem de R$ 56,6 milhões.
Além disso, no ano mais grave da pandemia de Covid-19, em 2020, o Ministério só gastou 29,45% dos recursos autorizados.
O Ligue 180 teve seus gastos diminuídos em 41% no quadriénio, e a Casa da Mulher Brasileira apresentou: zero de despesas em 2019; R$ 225,2 mil em 2020; R$ 1,2 milhão em 2021; e R$ 21,2 milhões em 2022, grande parte oriundo de restos a pagar de anos anteriores.
Crianças e adolescentes
A execução financeira para assistência a esse público (com recursos vindos do Ministério da Cidadania e do MMFDH) caiu, entre 2019 e 2022, de R$ 568 milhões para R$ 458 milhões, sendo 96% desse montante destinado ao programa Criança Feliz, que recebeu críticas tanto na concepção quanto na execução.
Apesar de o trabalho infantil acometer cerca de um milhão e oitocentas mil crianças, o governo Bolsonaro desmontou o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti): em 2019 foram gastos R$ 6,1 milhões e, desde então, nenhum centavo mais.
A “PEC da transição” criou um espaço fiscal de R$ 145 bilhões, o que permitiu principalmente a expansão do Bolsa Família. Outras áreas ganharam um “respiro” orçamentário para 2023:
Saúde
O Ministério da Saúde foi agraciado com R$ 22,7 bilhões adicionais com a Emenda Constitucional (EC), originada pela PEC da Transição, o que possibilitará a volta de programas como o Farmácia Popular, o Programa de Saúde Mental, o aumento da cobertura vacinal e a redução de filas de atendimento.
Educação
O Ministério da Educação recebeu R$ 12 bilhões com a EC, voltados às bolsas de graduação e pós-graduação, à recuperação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (sem reajuste desde 2016), à infraestrutura de creches e escolas (saindo de apenas R$ 5 milhões reservados pelo Bolsonaro para um total de R$ 356 milhões destinados por Lula à Educação Infantil. Já a ação de infraestrutura nas escolas saiu de R$ 3 milhões para R$ 917 milhões, e o EJA, de R$ 16 milhões propostos por Bolsonaro para R$ 57 milhões. Os programas de valorização da diversidade, o respeito aos direitos humanos e da inclusão, abandonados nos últimos quatro anos, receberam R$ 45 milhões com a EC.
Habitação
A EC da Transição possibilitou destinar R$ 868 milhões para o Programa Minha Casa Minha Vida em 2023.
Meio Ambiente
Na gestão de Lula, o ministério passou a se chamar “Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima”, órgão cuja dotação para 2023 alcança R$ 4,1 bilhões. O Ibama teve aumento de recursos de 65% para o combate ao desmatamento e queimadas, passando de R$ 269,5 milhões na LOA de 2023 para R$ 444,5 milhões depois da PEC da transição (EC 126).
Indígenas
O governo Lula criou o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e nomeou para chefiar os órgãos indigenistas, ativistas indígenas: Sônia Guajajara (MPI), Weibe Tapeba (Sesai) e Joênia Wapixana (Funai). Houve recomposição do orçamento da Funai e da Sesai para 2023, e a Funai viu sua dotação inicial aumentar 8%; e a Sesai de 61%.
Quilombolas
O governo Lula acrescentou R$ 68,7 milhões numa rubrica inicialmente zerada para cestas básicas.
Igualdade Racial
O ministério da Igualdade Racial (MIR) foi recriado tendo uma mulher negra como dirigente da pasta, Anielle Franco. A PLOA 2023 enviada pelo presidente Bolsonaro e aprovada pelo Congresso Nacional não previu recursos para a promoção da igualdade racial, contudo, o novo governo adicionou novos recursos (R$ 4,5 milhões) para a agenda. Também foram anunciados a criação de cotas em cargos de comissão, além da elaboração de diversos programas para o enfrentamento do racismo.
Mulheres
No governo Lula, o Ministério das Mulheres foi recriado sendo liderado por uma feminista, Cida Gonçalves, com recursos adicionais aportados para ações de enfrentamento à violência contra as mulheres (R$ 6,1 milhões), de promoção dos direitos das mulheres (R$ 1,6 milhões), de incentivo à autonomia das mulheres (R$ 1 milhão).
Crianças e Adolescentes
Por ser uma área pulverizada em diferentes ministérios, ainda não está claro quais são os recursos disponíveis para 2023. Sabe-se que houve aumento de 55,2% na dotação inicial para educação infantil em 2023 em relação à 2022 (R$ 357 milhões), além de R$ 11,5 milhões para o sistema socioeducativo, aumento do valor per capita do Programa Bolsa Família (mínimo de R$ 600 por família acrescidos de R$ 150 reais por criança de 0 a 6 anos e R$ 50 por adolescente de 7 a 18 anos e por gestante). Por fim, foi nomeada equipe especializada para a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNDCA) do Ministério dos Direitos Humanos.