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Desafios da educação pública para migrantes em território brasileiro

A pedido da deputada Carol Dartora (PT-PR), a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados promoveu, nesta quinta-feira (21), o debate “Desafios da educação pública para migrantes em território brasileiro”. Representantes da sociedade civil, de instituições públicas e organismos internacionais apresentaram argumentos a voltados à superação das barreiras da xenofobia e do racismo, propondo soluções para a garantia do direito social à educação às populações migrantes.

A experiência de migrantes haitianos se destaca nesse cenário. Em razão disso, fui convidado a compartilhar reflexões desenvolvidas ao longo da minha formação como sanitarista e ativista.

Excelentíssimos(as) Deputados(as), autoridades presentes, colegas e companheiros de luta,

Falo hoje não apenas como indivíduo, mas como parte de uma coletividade. Sou haitiano, migrante, egresso da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, a UNILA, instituição que carrega no próprio nome o ideal de integração, diversidade e justiça social.

A história do Brasil é, antes de tudo, uma história de migrações. Milhões de africanos foram arrancados à força de suas terras, escravizados, privados de liberdade e de educação. No século XIX e início do XX, ondas de migrantes europeus e asiáticos chegaram para trabalhar nas lavouras e cidades. Mais recentemente, recebemos fluxos da América Latina, do Caribe, da África e do Oriente Médio.

Ou seja, todos aqui, em maior ou menor medida, somos descendentes de migrantes alguns chegaram pelo grilhão da escravidão, outros pela fuga da fome, da guerra ou da perseguição, outros em busca de novas oportunidades. Mas todos ajudaram a construir este país.

E em todos esses períodos, a questão da educação dos migrantes foi central: ora negada, ora limitada, ora usada como instrumento de assimilação forçada. Muitas vezes, crianças migrantes foram impedidas de estudar por causa da língua, da burocracia ou do preconceito.

Nós, migrantes, seguimos essa mesma história. Chegamos trazendo conosco nossos sonhos, nossa língua, nossa cultura, nossa força de trabalho. Mas também encontramos barreiras que ainda persistem: a precariedade do trabalho, a discriminação racial, a dificuldade no reconhecimento de diplomas e, sobretudo, os obstáculos no acesso pleno à educação.

Entretanto, a educação tem sido para nós o caminho de resistência. Como estudante da UNILA, vivi uma experiência singular: uma universidade que nasceu com a missão de ser espaço de integração latino-americana, que nos ensinou que fronteiras não devem limitar o conhecimento, e que diversidade não é fraqueza, mas potência.

Ao concluir minha trajetória acadêmica, compreendi que a presença de migrantes nas universidades brasileiras não é apenas uma política de inclusão: é um investimento estratégico para o futuro do Brasil. Somos jovens, somos trabalhadores, pesquisadores, professores, artistas. Queremos contribuir com o desenvolvimento científico, cultural e social deste país.

Mas para que isso seja possível, não bastam boas intenções: é preciso coragem política e políticas públicas consistentes, que enfrentem as desigualdades de frente:

⦁ Reconhecimento e validação de diplomas migrantes sem a burocracia excludente e os altos custos que hoje barram milhares de migrantes qualificados.
⦁ Expansão real de bolsas e programas de permanência estudantil, porque acesso sem permanência é exclusão disfarçada.
⦁ Enfrentamento firme à xenofobia e ao racismo, inclusive dentro das universidades e escolas, onde muitas vezes se reproduzem as mesmas discriminações que a sociedade deveria superar.
⦁ Formação intercultural e salários dignos para professores e servidores, pois sem valorização profissional e sem educação antirracista não haverá diversidade reconhecida como valor, mas apenas como retórica vazia.

Ao falar aqui, lembro também da história do Haiti, a primeira república negra do mundo, nascida da luta contra a escravidão e pela liberdade. Nossa diáspora carrega esse legado de resistência e dignidade. Ao chegar ao Brasil, trazemos conosco não apenas necessidades, mas também saberes, memórias e contribuições.

Deputados(as), senhores e senhoras, a educação é o que transforma a migração em oportunidade. É o que nos permite passar do estigma à cidadania, da exclusão à participação plena. É ela que garante que histórias como a minha não sejam exceção, mas caminho aberto para todos que chegam.

Por isso, quando falo de migração e educação, não falo de um problema isolado, mas de uma questão estrutural da própria formação do Brasil. Reconhecer os direitos educacionais dos migrantes de hoje é também reconhecer a dívida histórica deste país com todos aqueles que, vindos de outras terras, ajudaram a erguê-lo.

Que esta audiência possa marcar um compromisso: que o Brasil, país de tantas migrações ao longo da sua história, reafirme seu papel como terra de acolhida, oportunidade e justiça.
Muito obrigado.

A audiência presidida pelo deputado Bohn Gass (PT/PR) contou ainda com as intervenções de: Ana Maria Gomes Raietparvar (Coordenddora-Geral de Promoção dos Direitos das Pessoas Migrantes Refugiados e Apátridas do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania – MDHC); Bárbara Pereira dos Cravos (Coordenadora de Projeto do Departamento de Proteção Social Especial do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome); Clarissa Teixeira Araújo do Carmo (Coordenadora-Geral de Política Migratória da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública); Diana Araujo Pereira (Reitora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana – Unila); Erasto Fortes Mendonça (Coordenador-Geral de Políticas Educacionais em Direitos Humanos do Ministério da Educação); Guelda Cristina de Oliveira Andrade (Secretária de Assuntos Educacionais da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação – CNTE); Luciana Hartmann (Representante do Instituto Migrações e Direitos Humanos); Magda Luiza Mascarello (Coordenadora-Geral do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas do Instituto Federal do Paraná – Neabi/IFPR); Matheus Alves do Nascimento (Coordenador do Grupo de Trabalho de Migrações, Apatridia e Refúgio da Defensoria Pública da União); Pablo Mattos (Oficial da Unidade de Proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR/ONU); Roldy Julien (Presidente da Associação dos Migrantes, Indígenas e Refugiados de Foz do Iguaçu – AMIRF); Wilzort Cenatus (Diretor-Executivo da União da Comunidade dos Estudantes e Profissionais Haitianos – UCEPH).

A íntegra da audiência está disponível em:


James Berson Lalane – Sanitarista, Mestre em Saúde Coletiva, Consultor do ministério da saúde, pesquisador do observatório de migração e saúde. Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde da população migrante e refugiada. Sua área de investigação é ampla e abrangente, abordando tópicos como saúde da população migrante e refugiada, políticas públicas e promoção de saúde, sistemas de informações em saúde, gestão de saúde, saúde digital e direitos humanos.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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