No Orun

Dona Jacira, o orun te receberá com escalda-pés e afeto

Nas religiões de matriz africana, a segunda-feira é o dia da semana consagrado a Exu, o orixá mensageiro, mestre da comunicação. Nesta segunda-feira, 28 de julho, nos despedimos de Jacira Roque de Oliveira, 60 anos, mais conhecida como Dona Jacira, mãe de Emicida, rapper, Fióti, empresário e cantor, e das filhas Katia e Katiane. Ao longo de sua trajetória, atuou como escritora, artista plástica e liderança comunitária. 

Detentora de saberes e fazeres, como gostava de dizer, primeiro tornou-se popular entre os fãs do filho, considerado um dos maiores MC’s da sua geração. Mas não demorou até conquistar um público próprio. E motivos não faltavam. Como descrito em uma reportagem publicada no Blog Mural, em 2018, ela pintava, bordava, tecia, dava oficinas e palestras. Tocava na bateria de um bloco de carnaval Afro Afirmativo, era figurinista, produzia bonecas, fazia pães artesanais, cultivava plantas para a produção de xaropes, licores, incensos, geleias e sabonetes feitos por ela mesma. Além de cuidar diariamente de uma ampla horta orgânica de onde saem legumes, verduras e seus incontáveis pés de morango.

Outro talento especial era a escrita. Em 2018, publicou seu primeiro livro, a autobiografia Café, lançado pela editora LiteraRua e a Lab Fantasma, empresa liderada pelos filhos. Em 2019, após conceder uma entrevista ao podcast Meteora, as apresentadoras Cris Guterres e Renata Hilário a convidaram para criar uma coluna em áudio para o programa. Assim, poderia compartilhar mais de suas histórias e ensinamentos. 

Em um post de homenagem após a notícia de falecimento, Renata Hilário contou que a ideia nasceu após a entrevistada ter dito: “meu sonho sempre foi ter um programa de rádio.” Ela não só aceitou como escolheu o nome: “Café com Dona Jacira”. Título que, mais tarde, lhe rendeu um podcast próprio e também uma coluna no UOL.

Em um dos episódios da coluna, a griô, como era carinhosamente reverenciada, falou sobre sua relação com o ato de escrever: 

Zambi, quando me concebeu, me disse: ‘Tenho o dom da escrita, sei disso. Hoje eu sei. E quando eu era criança sabia muito mais, mas por razões (…) que nós já sabemos, que é essa segregação, que é o sistema colonial”

Coluna Café com Dona Jacira no podcast Meteora

Lá, ela também dividia com os ouvintes questões do seu dia a dia, como sua luta contra o Lúpus e o fato de fazer hemodiálise há mais de 25 anos:

Eu sou do elemento terra, sou a pessoa que fica, que toma conta da casa. Sou a pessoa que tem a chave de São Paulo. E não é por gosto meu não. Antigamente eu não tinha dinheiro, não tinha como viajar, mas queria. Hoje eu poderia viajar se eu quisesse, mas não posso, porque faço hemodiálise todos os dias. É uma condição que tenho que aceitar, não vou ficar brigando com ela. Não tenho indicação para transplante, mas eu posso transplantar as minhas plantas aqui

Coluna Café com Dona Jacira no podcast Meteora

Seu segundo livro, “Um Escudo de Afeto aos Meus”, chegou em 2024. A obra, neste caso, nasceu inspirada no seu fazer como podcaster. A poesia esteve em sua voz e em todas as palavras colocadas no mundo por ela. Basta ler um post seu no Instagram para constatar. O último, aliás, deixou escapar sua vontade de recuperar sua saúde e retornar: “Estou ansiosa para voltar às atividades com vocês porque é o que me traz vida e sol . E o inverno não perdoa essas pessoas com articulações partidas”. 

Geledés – Instituto da Mulher Negra, se solidariza com a dor dos amigos e familiares. Dona Jacira deixa um legado comunitário e artístico imenso para o Brasil. Desejamos que, assim como ela fazia aqui, seja recebida No Orun com escalda-pés e muito afeto.

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