Era uma loira?
É, a loira, tá ligado? Ela falou assim: “Por que você ficou tão marrento depois que foi no Jô Soares?”. Olhei pro meu camarada e falei alto: “A mina tá bem louca, entra na conversa dos outros e vem falar bosta pra mim”. E ela [faz voz bêbada]: “Eu não tô bem louca, não!”.
Ela foi embora depois?
Foi nada, mano, ficou me chamando pra ir pra casa dela. Grudou dum jeito… E aí começou a contar da vida dela, entrou numa deprê, sentou lá e começou a falar: “Eu tenho uma filha de 3 anos, meu marido me abandonou”. Aí, puta, mano, essas histórias me cortam o coração.
A bêbada chata vira um ser humano…
Vira um ser humano! Aí eu quis ouvir a história, puta que pariu, peguei um afeto por essa desgraçada. Tô com dó dela agora, tadinha.
Que rapper é esse que evita sexo, drogas e rock?
Total, não fala de crime, trata mulher com respeito. Eu sou… Eu sou evangélico. Sou gospel. Sou semievangélico, se eu não falasse tanto palavrão, ia ser gospel fácil. Mas a mina lá foi embora com outro, não tem nada a ver comigo. Eu sou só um símbolo que ela tá vendo, ela quer falar pras amigas que tá dando pra um cara que é famoso. É a mina que vai engravidar e vai ter uma pensão alimentícia do maluco.
Tem gente que vira artista por isso…
Sou friozão. Passo tranquilão no meio do inferno e saio do outro lado lá. Tenho um relacionamento difícil com várias pessoas por isso, inclusive com a minha mina. Vou num lugar, tá tendo o coquetel da revista Sexy, várias minas em trajes sumários. Só que eu tenho uma missão, sou um soldado. Não me perco no caminho. Esse negócio de Emicida só existe na cabeça das pessoas. Vejo como se eu trabalhasse pro Emicida. Não tem nada de vida de artista, ficar massageando o ego, “fui no Jô Soares”.
Cobram muito de você por isso?
É muito louco o impacto da Globo. Tem lugar que vou e as pessoas perguntam mais da Afrodite [cadela de Emicida] do que de mim, por causa do Jô Soares. O garçom lá em Santa Catarina: “Você mordeu o cachorro mesmo?”.
Você conta que aprendeu a fazer rap com um pastor, quando era pequeno e frequentava a igreja.
É, eu venho dessa linhagem aí. Eu achava a macumba mais divertida, ficava ligado no batuque, mas o texto dos pastores influenciou meu freestyle, esse lance de persuadir as pessoas.
Jacira: Nós éramos integrantes da Igreja católica e do Movimento Sem-Terra. Já dormi muito em acampamento sem-terra com esses meninos. Eu era católica porque minha mãe era, toda a vida achei um saco. Um dia chutei o pau da barraca. Fazia parte do grupo Filhas de Maria, mandei todo mundo pra casa do caralho, tinha umas saias compridas, cortei e de cada saia fiz três. Aí fomos pra Universal.
Jacira: O pai dele era disc jockey. Ele não conseguia baile pra fazer, começou a trabalhar como metalúrgico, depois a pegar ferro-velho na rua. Aí começou a beber.
Jacira: Logo a mãe dele faleceu. Meu sogro era muito violento, matou minha sogra. Tive uma cunhada que não morreu porque fugiu, mas abortou três vezes, porque meu cunhado chutava a barriga dela, coisas desse tipo.
Emicida: Colou nos espíritos sem luz.
Emicida: Assim que meu pai morreu a gente colava nesse bagulho, mais porque depois do culto sempre rolava um rango.
E o seu padrasto?
Seu Eduardo é um maluco da hora. Tive meus desentendimentos com ele na adolescência, mas hoje o vejo na minha escola musical. Ele trouxe esses discos de moda de viola, por ser homem de campo. Só dei valor pra Chitãozinho & Xororó, Zezé di Camargo & Luciano quando conheci as paradas do seu Eduardo.
Qual é a história do Seu Eduardo com funerária?
Ele dava flores pra minha mãe, chegava todo dia com um maço de rosas, que homem romântico. Aí descobrimos que ele trabalhava na funerária, começamos a falar que ele arrancava flor do caixão… Minha escola musical foi essa aí, minha mãe escutava essas músicas de MPB, de dor de cotovelo. E as modas de viola do seu Eduardo eram sofridas pra caralho, mas tem a maior semelhança com o rap.
Você acha? Nunca imaginei.
Porra, os caras da moda de viola gostavam de dar umas ideias firmeza: “Mundo velho não tem jeito, já não endireita mais/ os filhos de hoje em dia já não obedecem os pais/ é o começo do fim, já estou vendo sinais/ metade da mocidade estão virando marginais” [versos de “A vaca foi pro brejo”, de Tião Carreiro & Pardinho]. Era uma coisa de alertar a sociedade, o rap também tinha essa postura.
Por que você gravou uma música com o NX Zero?
Porque eu gosto de NX Zero. Podem achar que traí o rap, mas eu gosto do NX Zero, eles me convidaram, qual o problema? Gravar com eles ampliou meu público, eu quero ser conhecido. Eu penso estrategicamente, não tenho culpa se os caras do rap não fazem isso. A gente tem três músicas de periferia hoje no Brasil: o rap, o funk e o tecnobrega do Pará. Um dia vai ter que unificar tudo isso, porque é tudo a mesma coisa, música de periferia.
Você faria um rap misturado com funk?
Faria. Nem toda letra de funk presta, mas o som do funk é bom, é cheio de batida, de batuque. Eu não acho ruim pensar minha carreira estrategicamente. O rap nacional nunca teve um boom comercial porque não tem um grupo de rap que seja autêntico e ao mesmo tempo seja comercialmente viável pras gravadoras. O único cara que foi longe foi o Marcelo D2. São Paulo é a terra do rap no Brasil, mas tirando Racionais não tem um grupo de expressão monstruosa. Os rappers que têm uma disseminação maior são todos do Rio, D2, Gabriel o Pensador, MV Bill. Um amigo da minha mãe falou: “O que eu gosto do seu rap é que ele foge desses racionaisismos”. Ele fala como se fosse uma religião, o “racionaisismo”. Os Racionais têm um peso ideológico foda pra nós, é a nossa história, mas até hoje o argumento mais forte deles é que não vão na mídia. E eu, cada vez que vou, sou apedrejado, como se eu fosse o Mano Brown, como se eu tivesse dito as coisas que ele diz. Nas favelas a regra é essa, os caras me cobravam: “Mas não tem o pacto dos rappers de não ir na mídia?”. Que pacto, mano?
Você acha que tem que ir à mídia?
Porra, lógico, cara. Você tem que ir onde tem respeito, onde as pessoas falam com você. Tipo, sou preto de favela, quero mudar essa situação e não vou lá falar com as pessoas do outro lado, vou ficar aqui reclamando? Nem fodendo.
“Podem achar que eu traí o rap, mas eu gosto do NX Zero, quero ser conhecido”
Você compra briga com o rap tradicional falando isso?
Não, eu compro uma briga com os caras hipócritas do rap tradicional. Todo mundo sabe que a coisa tem que andar e para isso acontecer a gente tem que dialogar. Você vive uma situação que te impulsiona a escrever uma música falando da pobreza. Assinou um contrato, vendeu disco, fez show, ganhou dinheiro. Na segunda parte, quando era necessário mostrar que conseguiu um progresso que não é do crime, você esconde aquilo e repete a dose da pobreza. As pessoas compram de novo, porque adoram o sofrimento, mas já não é a sua realidade, é mecânico. De repente, o rap virou um partido político.
De esquerda ou de direita?
De esquerda, mas que não funciona. Um mano meu diz que Karl Marx é foda, mas os marxistas são uma bosta. Aconteceu isso com o rap, a ideologia é foda, mas quem põe ela em prática tá fodendo ela.
Se olhar pelo ponto de vista deles, talvez entendam você como uma diluição do rap, “o cara se vendeu”.
Sim, para algumas pessoas sim. A minha única diferença é que tenho esse pensamento estratégico muito bom. Tento construir coisas que gerem mais coisas pro próprio rap, embora eu não me sinta muito à vontade quando as pessoas obrigam a gente a estar vinculado ao social. Quem tem obrigação de mudar essa porra é o governo, não é grupo de rap.
Você fica à vontade tocando em clubes de playboy?
Eu vejo cara na internet dizendo que eu canto pros caras que me discriminaram a vida inteira. Isso é um argumento muito vazio. Sou filho adotivo dum branco. Minha mãe trampava de empregada, eu ia com ela lá nas mansões. Eu achava do caralho. Era favelado só durante a noite, durante o dia eu morava em casa de rico [risos]. Minha mãe trampou pra patrão cuzão, mas também pra arquiteto que deixava eu ficar desenhando. Via escultura, tinha livro pra caralho, podia ficar vendo TV a cabo.
Mas como é tocar para esse público?
Tem uns momentos que entro num conflito, mas sinto que esse conflito é por causa do rap, não por eu estar num lugar estranho. Não posso escolher quem compra meus CDs e vai no meu show. Se eu for tocar no Japão o que eu vou fazer? Vou mandar importar uns pretos? Durante muito tempo eu fiquei no maior pé-atrás pra falar do que faço, dizia “a gente lançou um CDzinho aí” como se tivesse pedindo pras pessoas olharem pra nós por essa ótica do sofrimento mesmo. Não, mano, a gente é foda, vai fazer um CD e ele vai vender no mínimo 20 mil cópias. Por quê? Porque a gente sabe trabalhar direito. Eu tinha medo de declarar isso, mas comecei a me livrar dessa parada. E os caras começaram a dizer que eu fiquei marrento. Porque fiquei famoso eu tô esnobe? Não é ser esnobe, eu falo do que faço. Aí me olham e me chamam de moleque de apartamento. Na cabeça de vários caras do rap, o rap que eu faço é de boy porque é inteligente.
Mas você reclamou que não tinha muitos pretos no show ontem.
Estranho muito mais pela plástica da coisa, porque a gente tá adequado a ver vários pretos num show de rap mesmo. Quando subo e vejo vários brancos me dá um baque, mas tiro maior onda, não é um bagulho que me agride. Duas horas antes eu tava na Transamérica cantando com NX Zero, tinha várias loirinhas gritando: “Emicida!”. Acho do caralho. Domingo a gente vai estar aqui na quebrada, no Cachoeirinha, no pé da favela. Ali vai ter boy, maloqueiro, ladrão, todo mundo vai. Tem gente que sai de Alphaville pra vir aqui, isso é do caralho.
O rap brasileiro nasceu lutando contra o racismo, mas era também misógino, homofóbico. Emicida é rapper, logo……
Emicida é a contramão de várias dessas coisas aí. Mas, vou te falar uma parada, o rap não nasceu combatendo o racismo. O primeiro rap era de festa: “Fiquei sabendo, tem um tal de Pepeu/ que canta rap bem melhor do que eu”. Mas aí sabe o que aconteceu? Chegou NWA, Public Enemy, o rap gringo de protesto. Levou-se pra um lado consciente e daí foi pra um lado gangsta. Em 2000 veio o boom comercial com Jay-Z, rapper milionário. A gente tá sendo tão ridículo quanto os gringos, pegando o que há de pior no rap lá de fora, a casca. Rihanna apanha do namorado, quer processar, mas ela mesma se porta como puta. Do jeito que elas admitem ser tratadas, elas tão sendo agredidas de outra forma. Você cria uma sociedade doente.
Misoginia e homofobia foram importadas também ou a gente é assim?
Cara, isso não é do rap, vem da sociedade, e muito mais da sociedade de São Paulo. No Rio vejo mais respeito pelo homossexual, embora São Paulo tenha a maior Parada Gay do mundo. No resto do ano é notícia de agressão.
Você faria um rap sobre homofobia?
Nunca pensei nisso. Mas na verdade nunca fiz um rap falando nem de preconceito racial.
Mas você fala de preconceito racial da música “Quero Ver Quarta-Feira”, com a Mart’nália.
Sim. Nenhum tipo de discriminação é novidade pras pessoas. Processei um maluco por racismo. Ele implorou, ajoelhou pra mim, e eu achei da hora [risos]. Depois não levei pra frente, ia ter que faltar nos shows pra pôr o cara na cadeia. Só a dor de cabeça que dei no filho da puta, de ver ele chorando, já deu a lição. Fora que a polícia não registra BO de racismo. Não registra porque é inafiançável, se registrar tem que prender e, se prender, tem que trabalhar.
Qual foi o caso?
Eu e a Carolina pegamos um táxi, descemos na rodoviária Tietê, fui pagar, o maluco falou que o dinheiro era falso. Dei outra nota, ele falou que era falsa. “Pô, mano, só tenho essas duas notas.” Ele começou a falar uma pá de bosta, a resmungar: “E aí, vai querer debater, macaco?”. O segurança da rodoviária disse: “Desce daí, eu vi, isso é racismo, você vai ser preso”.
O segurança era negro?
Não, era branco, é importante ressaltar. O polícia era preto, não ouviu porra nenhuma. Ficamos seis horas na delegacia, o maluco começou a implorar, falou que tinha um sobrinho que era preto. “Vamos fingir que não aconteceu nada.” “Não, vou te foder pra você aprender.” Aí ele ajoelhou e começou a chorar, minha mina chorando também: “Ele tá pedindo perdão”. Eu gosto, ele tem que ser colocado nessa posição mesmo, de humilhado. Pode crer, não somos racistas, não, como diz o livro do Ali Kamel…
Você diz que rap, funk e tecnobrega deveriam se unir. O preto, a mulher e o gay não deveriam trabalhar juntos contra o preconceito?
Total, você falou da melhor forma.
Defender a homossexualidade no rap é um tabu.
MV Bill já deu essa ideia, mas as pessoas fingem que não ouvem. Helião falou da burrice do rap em “O mensageiro”: “Vejo nos bailes rap milhares de pessoas/ não conquistamos o respeito, nem com festas boas”. Sei todos os raps de cor.
“Emicida” é “o matador de MCs”. Você está comendo o rap por dentro?
Acho que sim, acho que a gente é a maior bandeira dessa revolução hoje. Eu sou o maior nome dessa nova fase, dessa nova safra do rap.
Você vai matar o rap?
O que os caras vão fazer da música deles eu não sei, mas eu vou cantar com [a sambista] Fabiana Cozza e me sinto pequeno. Não quero me sentir pequeno. Por isso falo que não sei se o que vou fazer vai ser chamado de rap ou se vai ser rap. Falam que Gabriel o Pensador não é rap. Pra mim é, e um dos mais fodas que tem. A favela adora ele, sabe por quê? Porque ele é sincero na música dele, não tá de patifaria.
Engraçado. Pra mim é como se ele soasse falso…
A imprensa espera o aval do rap de São Paulo sobre tudo que é feito de rap fora de São Paulo, e o rap de São Paulo não vai assumir que Gabriel o Pensador é foda. Todo mundo fala de preconceito de preto, mas propaga essa porra de piada de loira. Olha, te digo que sou gay, mas tenho medo de falar isso pra vocês.[Irônico] Não tava ligado nisso aí, não, mano, não olha mais pra mim! [Risos, Jacira gargalha.] Tenho vários camaradas que são gays. Se for com base nisso aí os caras que devia odiar são os héteros, que vivem fazendo bosta.
Para terminar, qual é a sua religião?
Sou uma mistura de todas. Admiro budismo. Respeito candomblé. Mas minha doutrina de vida é respeitar essas coisas todas. Se fosse ter uma religião, seria respeitar a natureza, interferir o mínimo possível no que tá ao meu redor.