Imagem: Montagem com trechos do PL da Devastação e de áreas desmatadas no Mato Grosso.
Depois de uma conversa com Sueli Carneiro, minha referência e chefe em Geledés, tenho procurado nos últimos dias textos de Abdias do Nascimento que relacionem o meio ambiente e os orixás – que, nos cultos de matriz africana, são as manifestações das forças da natureza, com que tudo se relaciona e que agem como orientadores de soluções para crises, como a climática.
Em um texto pouco conhecido, que pode ser encontrado no livro Memórias do Exílio, Brasil 1964-19??, coordenado por Pedro Celso Uchôa Cavalcanti e Jovelino Ramos, Abdias do Nascimento fala sobre cada orixá e suas relações com aspectos da natureza. Imagina só tomar decisões políticas pensando nas características da natureza?
“Mencionar Ogun é evocar uma ideia-força que se opõe à submissão dos povos africanos e negros em qualquer parte do mundo. Orixá do ferro e da guerra, por extensão de todos os metais e da tecnologia, Ogun encarna a vingança armada. Divindade responsável pelo reino da natureza, Ossaim é o orixá-folha; está implicado não só com as ervas, plantas e raízes que servem à farmácia e à medicina tradicionais, como são do seu domínio as matérias-primas que alimentam a economia dos países desenvolvidos”, descreveu Abdias.
“Iemanjá, divindade das águas, mãe de todos os orixás, preside a fecundação e a procriação da espécie: está diretamente relacionada aos problemas do controle da natalidade, da pesca e das secas. Enquanto Xangô, o deus do fogo, das tempestades e da justiça, vela pelos direitos humanos e pela liberdade; seu símbolo, o machado de duplo fio, significa a disposição bélica do orixá no cumprimento de suas funções rituais”, prosseguiu.
“Já Oxum clama pelo amor e a criatividade que devem inspirar a vida em todos seus instantes. Ifá revela o passado, sabe o presente e revela o futuro; isto é, ele nos fornece o conhecimento da história, nos habilita a fazer projetos. Omulu, o médico dos pobres, trata da vida e da morte. Exu, que os cristãos identificam com o demônio, é o senhor das encruzilhadas da vida, de todos os caminhos do universo; divindade ambivalente, simboliza a contradição inerente à existência humana e o perpétuo movimento da vida. Exu é a divindade mais polêmica e controvertida, já que enfeixa vários níveis de funções rituais e poderes muitos”, escreveu.
A ideia é reforçar e utilizar em nossos novos documentos o passado como referência para o futuro. Tenho me alimentado dessa busca. Quando pesquisamos, encontramos peças preciosas, com uma imensidão de formulações que vêm em diversas formas e perspectivas, com mais referências. Abre-se, então, um infinito mundo de possibilidades, e minha vontade é parar tudo e mergulhar nessas investigações por um tempo também indeterminado.
Foi assim quando, em um evento realizado por Geledés – Instituto da Mulher Negra, que a coordenadora do programa de educação do instituto, Suelaine Carneiro, apresentou um documento sobre o livro Há um buraco negro entre a vida e a morte, com recomendações e orientações do movimento negro para a Eco 92. Ali, eu queria parar tudo e ler, pensar, escrever e achar mais coisas. É fundamental a obra formulada por Geledés com a Soweto Organização Negra. Vão lá visitar o Centro de Documentação e Memória Institucional de Geledés.
“Nesta linhagem, buscou-se fundamentar argumentos para políticas, através de uma análise sob o prisma da deterioração do nosso meio ambiente, os desequilíbrios/desigualdades assinaladas nas relações de classe, raça, sexo e procedência regional, explícitas na divisão social do trabalho. Sua ação, evidentemente, repercutirá sobre as condições subumanas em que vivem Negros e Pobres no Brasil. Pois não se trata apenas de um simples apelo à elaboração de políticas públicas nacionais ou internacionais, voltadas à integração social destes segmentos miseráveis. Trata-se de uma constatação: é urgente a integração destes segmentos à própria vida.”, destacou um trecho desse livro importante para a história.
Acredito ser fundamental olhar as formulações do movimento negro para avaliarmos as políticas de hoje que aprofundam as desigualdades. Olhar para trás mostra que as conquistas ambientais e sociais sempre foram fruto de resistência. O movimento negro acumulou um repertório crítico sobre as formas de exploração e desigualdade estrutural no Brasil. Revisitar essas formulações revela como o racismo ambiental e o desmonte de direitos ambientais fazem parte de um mesmo processo histórico de exclusão.
Ao dialogar com essas formulações, criamos pontes entre passado e presente, fortalecendo a capacidade de articulação dos movimentos sociais hoje, especialmente em um contexto de retrocesso legislativo.
Apontado por especialistas e ambientalistas como o maior retrocesso ambiental no Brasil desde a redemocratização, o Projeto de Lei nº 2.159/2021 – apelidado de PL da Devastação – foi aprovado de forma acelerada em uma sessão remota da Câmara dos Deputados, realizada na madrugada de 17 de julho de 2025. A votação, conduzida pelo presidente da Casa, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), ocorreu com a ausência de cerca de 148 dos 513 deputados federais. Como o projeto já havia passado pelo Senado, agora ele aguarda sanção ou veto do presidente Lula.
O PL da Devastação representa a institucionalização do racismo ambiental no Brasil. Ao flexibilizar normas e abrir caminho para a implementação de empreendimentos sem a devida avaliação de impactos, o projeto condena territórios tradicionalmente ocupados por populações negras, indígenas e periféricas a uma nova onda de violência ambiental.
É a negação do direito a um ambiente saudável e seguro, e, portanto, do próprio direito à vida digna. Essa proposta não é apenas tecnicamente irresponsável — ela é eticamente inaceitável. Se não for integralmente vetada, oficializa um modelo de desenvolvimento baseado na lógica de que alguns corpos podem ser sacrificados em nome do lucro.
O projeto aprovado pelo pior Congresso Nacional da história do Brasil materializa de forma violenta o racismo ambiental, uma das expressões mais perversas do racismo, ao negar a comunidades inteiras o direito de viver com dignidade em territórios saudáveis.
O racismo ambiental serve como princípio organizador fundamental para sistemas e processos no centro das crises climáticas e ambientais. É isso que assistimos o Estado fazer nas cidades, com as políticas públicas, praticando o genocídio de forma deliberada, ampliando as desigualdade raciais, sociais e que desumanizam as pessoas em seus territórios negros e indígenas. Esse conceito é indispensável para compreender como a degradação socioambiental e as crises climáticas impactam de maneira desigual populações periféricas e racializadas, aprofundando injustiças históricas.
Do passado ao presente, população negra, movimentos e organizações se organizam para barrar retrocessos, para construir de forma mais igualitária políticas por qualidade ambiental e de vida. Não podemos negar o passado.
Vetar esse projeto destruidor deveria ser prioridade e feito sem pensar, sem consultar o agronegócio. Veta, Lula!
Mariana Belmont – Jornalista e assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra, faz parte do conselho da Nuestra América Verde e da Rede por Adaptação Antirracista. E organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023).