A jornalista Ana Cristina Rosa é Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública) - Foto: Keiny Andrade/Folhapress
Estou cada vez mais convencida de que pessoas negras são “experts em ressignificação”. A especialização foi se dando ao longo dos séculos (literalmente) de convívio com adversidades (de diversas ordens), que perpetuam níveis extremos de desigualdades.
Como em toda regra, há exceções. Mas, em geral, a vida do negro é repleta de lições sobre a urgência de transformar a dor em resistência, convertendo o sofrimento em esperança. Os danos resultantes de uma realidade traumática jamais serão esquecidos ou superados, mas o processo de ressignificação é capaz de atribuir um propósito à dor.
É assim que enxergo os desdobramentos da tragédia ocorrida no Recife há cinco anos com o pequeno Miguel, filho da então empregada doméstica Mirtes Renata Santana. Acho difícil de esquecer, mas para quem não lembra o menino despencou do nono andar de um prédio de luxo onde a mãe trabalhava.
Em plena pandemia de Covid-19, a empregada confiou os cuidados do filho de cinco anos à patroa, Sari Corte Real, enquanto passeava com o cachorro da madame. A então primeira-dama do município de Tamandaré negligenciou o afazer, chamou o elevador e despachou o filho da doméstica para uma jornada
que resultou na morte.
Especialistas dizem que a perda de um filho é a maior dor que um pai pode sentir. Um prejuízo emocional que jamais será superado. Mas como “a vida sempre continua”, já diz a canção, ao longo dos últimos cinco anos a mãe enlutada elaborou o sofrimento e iniciou uma jornada de transformação da própria realidade. Este mês, Mirtes formou-se em ciências jurídicas e sociais com direito à nota máxima no trabalho de conclusão de curso sobre “Trabalho escravo contemporâneo e direitos fundamentais: uma análise da proteção constitucional brasileira com foco nas trabalhadoras domésticas”.
O caso do menino Miguel é a síntese da tragédia social de um país racista, preconceituoso e elitista que está acostumado a naturalizar o extermínio cruel e violento da maioria negra.
Ana Cristina Rosa – Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)