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“FUI CRIADO PARA SER SUBMISSO “

 

O R. me enviou este email:

 

 

Oi, Lola! Primeiro queria deixar claro que gosto muito do seu blog. É realmente como se estivesse sentindo um abraço da pessoa mais compreensiva e caridosa do mundo quando leio suas palavras. Tanto que sempre quando estou mal, não deixo de passar aqui.
Bom, tenho 17 anos e moro no centro-oeste. Sou filho caçula, e sempre recebi muito carinho da minha mãe.

 

 

Talvez, por ela ter sido minha grande amiga e companheira, acabei absorvendo algumas de suas características.
Sempre fui acostumado a ser uma pessoa passiva frente aos outros, e ao mundo de maneira geral. Deixava as pessoas pisarem em mim e sempre aprendi a sofrer calado. Eu não era o garoto mais debochado da sala — nunca fui. Mas mesmo assim, por ter cabelo grande na época e possuir feições femininas desde nascença, fui alvo de críticas e repressões.

 

 

Lembro-me de uma vez que cheguei no colégio com o cabelo todo liso. Minha mãe tinha feito escova em mim (eu tinha pedido), e eu estava feliz com o resultado. Era só por um dia — isso na segunda série. Quando cheguei no colégio, já começaram a rir de mim e fazer aquelas piadinhas que todo mundo conhece. Saí correndo e fui pro banheiro chorando. Me tranquei lá e esperei passar. Não contei pra minha mãe, nem pra ninguém; ficou por isso mesmo. Eu superei.

 

 

Essa história foi só pra dar um exemplo de como fui ensinado a agir. Fui criado a ser submisso como uma menina (numa visão de mundo machista, é claro), e por isso sinto que sei em parte como as mulheres se sentem com relações invasivas e com essa mordaz sensação de impotência.
Quisera eu que toda essa história tivesse terminado nas piadinhas colegiais.
Quando eu estava na segunda série, fiz um grande amigo. Vamos chamá-lo de Vitor. Todo fim de semana eu ia para sua casa, e nós brincávamos a tarde inteira.Após o dia de diversão, eu dormia lá mesmo. Minha mãe nunca teve problemas com isso, já que ela conhecia a mãe de Vitor.

 

 

Na segunda série mesmo, quando eu tinha 7 anos de idade, comecei a ser abusado sexualmente pelo pai desse meu amigo. Lembro da primeira vez que o vi, ele me pareceu amigável. Me comprou um sorvete, me deixou em casa e nos despedimos. Desde aquele dia, senti que ele me tratava de um jeito estranho.Mais ou menos um mês depois, quando eu ia dormir na casa do meu amigo, ele começou com os abusos. Eu sentava na frente da cama com o Vitor, numa cadeira, quando íamos jogar videogame. Ele se sentava atrás, na cama.Começava a passar a mão pelo meu corpo de forma delicada, e eu, muito inocente, pensei que era algo normal. Em questão de pouco tempo começou a tocar meu corpo todo. Logo ele estava me chamando de noite para fazer “serviços” pra ele, quando eu dormia na casa do meu amigo.

 

 

Não vou ser hipócrita. Eu continuava indo porque eu gostava SIM. No entanto, não tinha noção do quão errado e destrutivo era aquilo. Afinal, eu tinha 7 anos. E garanto que muitos dos que me julgarão por ter sido passivo frente a essa situação talvez fariam o mesmo se estivessem em meu lugar. É muito fácil condenar o outro se colocando no lugar como alguém com o nível de maturidade presente. Quando se tem 7, 8, 9 anos, te garanto que as coisas não são claras assim.
Enfim, o abuso durou até os 13 anos. Claro, havia dias que eu simplesmente não queria fazer nada com o pai desse meu amigo, mas ele insistia e eu acabava cedendo.
Aconteceram diversas outras ocorrências parecidas na minha infância e pré-adolescência.

 

 

Eu tinha predominantemente amigos homens, e por isso sempre ocorria de dormir na casa deles. Esses mesmos amigos, que sempre fizeram piadinhas com gays e sempre se disseram heterossexuais (assim como se dizem atualmente) TAMBÉM se aproveitaram de mim, forçando sexo oral em brincadeiras e outras coisas mais. Novamente, não vou ser hipócrita de dizer que eu não estava ciente de minhas ações todas as vezes e que não gostava. Mas diria que 60% das vezes, fazia isso simplesmente por não saber dizer não, por não conseguir reagir e me impor. Era algo impensável pra mim, pois parecia que estabelecer limites era algo errado.

 

 

Aos 13 anos, numa tarde, estava andando  com meus dois grandes amigos, que me acompanharam desde os 7 anos de idade. Um deles era o Vitor, filho do pai que me abusava. É meio nebuloso o que aconteceu nesse dia, pois eu estava um tanto transtornado. Minha vida se desmoronava — meus pais, o símbolo que eu tinha de estabilidade, de pilar do meu emocional, estavam à beira de uma separação extremamente turbulenta. Eles sempre me envolviam no meio, e eu ficava pior do que os dois. Nesse clima dantesco, acabei soltando numa conversa com esses dois amigos que eu era gay. Lembro até hoje do olhar que o Vitor me remeteu, meio de estupor, meio de nojo. Na hora falaram que não se importavam, que estava tudo bem.
Depois desse dia, nunca mais saí com eles, que hoje não passam de conhecidos. Ligava e não me atendiam. Não satisfeitos, eles contaram pros seus respectivos pais, que foram logo falar pra minha mãe me levar num psicólogo — sem explicar o porquê. O pior de tudo é que eu nem sabia se era gay de verdade.Tanto que até hoje não sei. Fico com meninos e com meninas, mas pra mim isso ainda é uma incógnita.

 

 

Depois desse período, entrei numa depressão profunda, que durou todo meu período de ensino médio, e que ainda se estende. Não só depressão, mas ansiedade crônica, insônia crônica, e mais uns sintomas desconcertantes, como desrealização e despersonalização. Pra quem não sabe, uma pessoa despersonalizada e desrealizada perde a sensação de ser ela mesma. Você acorda de manhã, se olha no espelho, mas a imagem que vê é estranha.

 

 

Tudo é estranho. As pessoas à sua volta parecem autômatas, realizando tarefas de forma mecânica e fatídica. Isso pra não falar que você perde completamente seus sentimentos. É como se você morresse por dentro. Seu cérebro, como mecanismo de defesa pelas reações negativas vindas de fora, desativa seu sistema límbico (parte do cérebro responsável pelas emoções).
Sinto que não consigo ter um sentimento de afeto denso a ninguém desde então. Não tenho ânimo pra mais nada.

 

 

Não consigo me divertir, nem com jogos, nem com amigos, nem com nada. Consigo disfarçar minhas emoções, sorrindo em momentos oportunos pra ocultar meu verdadeiro eu. Faço terapia comportamental há um ano e meio, tratamento com antidepressivo, já tomei remédio pra ansiedade, já fiz terapia transpessoal, acupuntura… nada parece responder. Muita gente diz que não tenho do que reclamar por ter boa condição financeira, ter pessoas que gostam de mim, por ser bonito. Mas ninguém pode falar que eu não tento, pois já fiz de tudo, tudo mesmo. Parece que é um câncer que se apoderou do meu corpo, e que ele só vai me deixar quando eu morrer.

 

 

Nunca vou esquecer do dia que contei pra minha mãe do abuso. No meio das lágrimas derramadas, ela também acabou se revelando — como forma de consolo. Ela me contou que foi estuprada pelos seus dois irmãos mais velhos, quando tinha cerca de 13 anos. Ela tentava fechar a porta, impedindo-os de entrar, mas não conseguia. Ela me disse que não podia contar à sua mãe o que ocorria, porque senão era ela quem iria apanhar. Acho que nunca chorei tanto em toda minha vida como nesse dia. Poucas coisas no mundo devem ser mais destrutivas psicologicamente do que o abuso sexual.

 

 

De tudo isso que passei, aprendi que caso eu tenha um filho, farei tudo diferente do que minha mãe fez comigo. Talvez se ela não tivesse me feito uma pessoa tão inerte e passiva, eu não teria aceitado essa série de abusos em minha vida, que se mostraram com o tempo tão destrutivos. Talvez, se ela não tivesse feito do sexo um tabu tão grande, eu teria tido maior liberdade pra contar o que estava acontecendo quando voltava da casa do meu amigo.

 

 

Não serei também um pai tão relapso, que só se preocupa em colocar comida em casa e que nunca troca uma palavra de afeto e carinho com seu filho. E você que está lendo, seja a Lola ou outra pessoa qualquer, que isso sirva de exemplo pra o que NÃO fazer com seu filho ou filha. Fazer uma pessoa submissa é assinar o atestado de sofrimento pra ela em um futuro próximo.
Quem não sabe se impor, leva pancada de todos os lados. Infelizmente, aprendi isso da pior maneira possível.

 

 

Meu comentário: R., aguente firme que tudo ficará melhor. Você está passando por inúmeros problemas, grande parte deles gerados por esses traumas todos que você sofreu. Você é muito novo ainda, só 17 anos, e, a meu ver, vem demonstrando uma maturidade enorme pra superar tudo isso. E você está tendo acompanhamento psicológico. Você vai superar.

 

 

Mas que é horrível, é. Sinto muito. Só posso te dizer que isso que você passou acontece com meninas e meninos criadas de todas as formas possíveis. Crianças que são criadas pra reagir, crianças que são criadas por pais menos conservadores, também são abusadas. O padrão muito parecido é a criança se calar, não contar pra ninguém, se culpar, por achar que provocou, ou talvez, em certos casos, por ter apreciado alguma coisa (como a atenção recebida de um adulto, por exemplo).

 

 

Mas é bem diferente quando o abuso vem dos seus amigos, rapazes da sua idade, e dos pais desses amigos. Você já parou pra pensar que aquele olhar “meio de estupor, meio de nojo” que o Vitor te deu pode ter sido a constatação (terrível) de que o pai dele é um molestador? Quem sabe Vitor também foi abusado pelo pai. Quem sabe Vitor desconfiava, mas não tinha certeza, sobre o pai. Quem sabe o pai de Vitor abusou, e abusa, de outras crianças também. Você já pensou em denunciá-lo? Depois que você contou pra sua mãe, ela não pensou em procurar a polícia?

 

 

Afinal, o crime que ele cometeu ainda está muito longe de prescrever. Depois que a vítima faz 18 anos, ela tem mais 20 anos, em casos de estupro, pra denunciar o crime. Antes da nova lei , que entrou em vigor em maio de 2012, a contagem do tempo era de quando havia acontecido o abuso. Agora não.

 

 

Evite culpar a sua mãe. Culpe quem te abusou. A meu ver, você dá importância demais a sua criação. É bacana que você se identifique e empatize com as meninas. De fato, numa sociedade machista, boa parte das garotas é criada pra ser passiva, pra agradar, pra obedecer, pra não ter voz. E isso é péssimo, sem dúvida. Mas o modo como meninos são criados também é, não? Meninos são ensinados a agredir, a resolver conflitos através da força, a reagir à violência com mais violência. Como diz vítimas domesticadas, e criamos estupradores. Lembre-se que o pai do Vitor “sabe se impor”.
Mas concordo que é melhor ser criadx pra reagir, pra ser forte. E nunca é tarde pra começar, R. Reaja agora. Denuncie.

 

 

 

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