Geledés na ONU

Geledés na FfD4: Justiça econômica é justiça racial

Estamos em Sevilha, representando  Geledés – Instituto da Mulher Negra na Conferência da ONU sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FfD4), um espaço fundamental onde governos e sociedade civil negociam os rumos da economia global. O processo da FfD (Financing for Development), iniciado em Monterrey em 2002, busca criar mecanismos justos, sustentáveis e transparentes para enfrentar as desigualdades econômicas entre países e dentro deles. Para Geledés, participar desse processo está diretamente conectado a uma de nossas principais agendas: o empoderamento econômico da população afrodescendente, em especial mulheres afrodescendentes, que seguem sendo um dos grupos mais impactados pelas injustiças fiscais, pelas políticas de austeridade e pela falta de acesso a financiamento em escala global.

Na véspera da Conferência oficial, participamos ativamente do Fórum da Sociedade Civil para o FfD, que reuniu movimentos sociais, ONGs e coletivos globais. Um dos momentos mais marcantes foi a apresentação pública da Declaração da Sociedade Civil, feita por Stefano Prato, Co-chair do mecanismo oficial de participação da sociedade civil no processo de FfD.

Essa declaração traz um marco político, pois pela primeira vez em décadas de negociações multilaterais, a sociedade civil global assume com coragem o reconhecimento da dimensão racial das desigualdades econômicas globais e afirma o direito à reparação. Esse posicionamento está diretamente conectado a uma incidência construída por Geledés nos últimos meses, buscando inserir o tema da justiça racial e reparatória no centro do debate sobre a arquitetura financeira internacional.

Abaixo parte do conteúdo sobre justiça racial:

“Também fazemos um chamado pelo reconhecimento do contexto histórico das desigualdades globais. As reparações devem fazer parte da discussão, especialmente em relação aos danos econômicos e ambientais causados pelo colonialismo, pela escravidão e pela extração de recursos do Sul Global. Isso implica não apenas assistência, mas mudanças sistêmicas nas políticas de dívida, comércio e tributação que continuam a prejudicar essas regiões e grupos marginalizados. A dimensão racial do desenvolvimento sustentável precisa ser reconhecida.

A FfD4 oferece uma oportunidade para delinear um conjunto ambicioso e abrangente de reformas da arquitetura financeira internacional, a ser decidido de forma democrática, assegurando os direitos humanos, a igualdade de gênero e raça, e a integridade ecológica. Isso deve incluir o reconhecimento e a reparação das disparidades econômicas históricas e sistêmicas impostas aos países africanos e às comunidades afrodescendentes em outras regiões, diretamente ligadas aos legados coloniais, ao racismo sistêmico e à exclusão estrutural perpetuada pelas instituições financeiras internacionais.

Reafirmamos a Década Internacional das Nações Unidas para os Afrodescendentes e enfatizamos que o financiamento para o desenvolvimento deve enfrentar explicitamente as estruturas econômicas racializadas que continuam extraindo riqueza dos países africanos e das comunidades afrodescendentes ao redor do mundo. A justiça reparatória — incluindo medidas fiscais direcionadas, tributação redistributiva e investimentos diretos para africanos e pessoas afrodescendentes — deve ser parte integrante de qualquer reforma da arquitetura financeira global.”

Além disso, a declaração dos governos a ser aprovada na conferência contém três importantes parágrafos que indicam a necessidade do reconhecimento do racismo como uma barreira estrutural ao desenvolvimento e apontam caminhos para enfrentá-lo de forma mais concreta.

O parágrafo 12 reconhece explicitamente que a discriminação – incluindo o racismo e a xenofobia – constitui um obstáculo ao desenvolvimento econômico e social, estabelecendo o compromisso dos Estados em combatê-la como condição para promover justiça econômica. O parágrafo 63 reforça a importância de dados desagregados por raça, etnia e outras características para orientar políticas públicas eficazes e monitorar desigualdades de forma interseccional — ponto fundamental para garantir que as agendas de igualdade racial e de gênero sejam de fato implementadas. Já o parágrafo 33 sinaliza um avanço ao mencionar o papel das diásporas no financiamento do desenvolvimento, abrindo margem para a valorização e o fortalecimento das contribuições econômicas das comunidades afrodescendentes globalmente.

Esses elementos demonstram avanços importantes que dialogam diretamente com a incidência que temos construído por uma abordagem de justiça racial no âmbito da governança econômica internacional.

Esses avanços não surgem do nada. São fruto da luta contínua de movimentos negros, indígenas, feministas e do Sul Global que vêm denunciando as engrenagens raciais e coloniais da economia global. E é com esse compromisso que seguimos em Sevilha: fazendo ecoar as vozes que historicamente têm sido silenciadas, e reafirmando que sem justiça racial, não há justiça econômica possível.


Letícia Leobet e Gabriel Dantas – Assessoria Internacional – Geledés – Instituto da Mulher Negra

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