Reprodução/Revista Afirmativa
Geledés – Instituto da Mulher Negra vem a público manifestar seu repúdio à agressão institucional e homofóbica cometida contra a professora Maria Inês da Silva Barbosa durante a Conferência Municipal do SUS, realizada nesta quarta-feira, 30 de julho.
Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, mestre em Serviço Social, pesquisadora respeitada e comprometida com a construção de uma saúde pública igualitária, Maria Inês é uma mulher negra que ousou falar e, por isso, foi violentamente silenciada. Sua expulsão arbitrária e truculenta, motivada pelo uso de pronomes neutros em sua fala, escancara o incômodo de autoridades com qualquer discurso que desestabilize a lógica cisnormativa, racista e misógina que estrutura as instituições deste país.
A tentativa de desqualificação de sua fala, sob o pretexto de “doutrinação ideológica”, revela, na verdade, a face autoritária de um projeto político que teme a emancipação de corpos historicamente subalternizados. O que se viu na conferência não foi um embate de ideias, mas o exercício do poder como coação. O que se tentou calar foi a voz de uma intelectual negra que ousa pensar políticas públicas a partir do princípio da equidade e do reconhecimento das identidades dissidentes.
Diante de uma tentativa pública de constrangimento e deslegitimação, Maria Inês recusou-se a compactuar com a lógica autoritária instaurada no espaço e se retirou da conferência em um gesto de dignidade e enfrentamento.
Geledés reafirma que não há democracia possível onde as mulheres negras são caladas. Não há política pública legítima onde a diferença é tratada como ameaça. Não há justiça social sem o enfrentamento direto ao racismo que opera, inclusive, nos silêncios impostos.
Nos solidarizamos com Maria Inês, cuja recusa em permanecer diante da violência do prefeito foi um ato de insurgência. Sua postura reafirma o que insistimos em dizer há décadas: a presença de mulheres negras em espaços de poder é, por si só, uma afronta às estruturas que se alimentam da exclusão do racismo e da cisnormatividade. Não aceitaremos que nossas vozes sejam tuteladas, nem que nossas existências sejam enquadradas por conveniências políticas.
E por isso, faremos ecoar a fala que a professora faria na conferência:
Consolidar o SUS com a força do povo, participação social e políticas públicas
XV CONFERÊNCIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE CUIABÁ
Conferência Magna: “Consolidar o SUS: Com a Força do Povo, Participação Social e Políticas Públicas”
Prof.ª Drª Maria Inês da Silva Barbosa
Cuiabá, 30 de Julho de 2025
Autodescrição.
Saúdo nossa ancestralidade.
Saúdo àquelas e aqueles em suas diversas formas de ser que construíram estes momentos de reflexão-ação.
Saúdo ao encontro e reencontros de companheiras, companheiros, companheires, sintam-se nominadas (os) (es) na graça de Júlio Cesar de Souza Garcia, dentre outros, outras (es).
Saúdo àquelas e aqueles inviabilizadas (os) (es), vozes emudecidas sem cuja existência não existiríamos: presentes; limpam, cozinham, servem, sofrem, riem, choram, estão nos becos e vielas, de balas perdidas que encontram corpos negros, estão nas periferias, nos centros, nas aldeias, na vida urbana, rural, nas palafitas, mulheres violadas, subjugadas, aviltadas, em distintas identidades de gênero, pelo jugo do patriarcado, migrantes, àquelas (es) que sequer imaginam que delas (es) falamos, presentes…
Somos Negras, Negros, Negres, Indígenas, Ciganas (os) (es), Brancas (os), Branques, LBTGQIAPN+, Pessoas com deficiência; enfim a plenitude da diversidade de existências, em contextos políticos, econômicos, culturais, que valorizam ou negam a vida.
“Consolidar o SUS: Com a Força do Povo, Participação Social e Políticas Públicas”
Para iniciar ofereço alguns versos da poética de Conceição Evaristo, escritora negra brasileira, porque nos estimulam ao pensar coletivo, ao reconhecimento e sua importância enunciada da força do povo – de que povo estamos falando:
Do velho ao jovem
Na face do velho
as rugas são letras,
palavras escritas na carne,
abecedário do viver.
Na face do jovem
o frescor da pele
e o brilho dos olhos
são dúvidas.
Nas mãos entrelaçadas
de ambos, o velho tempo
funde-se ao novo, e as falas silenciadas
explodem. (…)
Somos mais de 300 povos indígenas, falam-se no Brasil mais de 270 línguas…
Os povos ciganos aqui desde os idos de 1500, degradados que foram de Portugal
Quantos somos em Cuiabá? Como se caracteriza a diversidade étnico-racial em Cuiabá? Qual é o contexto histórico de Cuiabá?
“Quer entender o final, presta atenção no começo” (Provérbio Africano que desconheço a origem) – Relações de poder
Importante lembrar que dia em 25/07 se celebra o Dia Internacional da Mulher Afro-latino Caribenha, celebração do processo de luta e resistência, assim como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, instituído pela Lei 12.987/2014, Tereza de Benguela foi uma das mais importantes lideranças quilombolas do século 18. À frente do Quilombo do Quariterê, Vale do Guaporé, Vila Bela da Santíssima Trindade, primeira capital de Mato Grosso, resistiu por décadas à escravidão e criou um sistema político e econômico autônomo.
O tema nos impulsiona a refletir sobre o um projeto político emancipatório necessário para a da consolidação do direito à saúde. É extenso e contraditório o caminho, avanços e recuos, que impedem que a consagração do direito à saúde: conforme assegurado constitucionalmente: direito de todos (as), (es) e dever do Estado.
Lembro Nelson Mandela, que nos ensina ser longo o caminho para a liberdade e que “quando escalamos uma montanha, descobrimos outras a serem escaladas”.
Consolidar o SUS, de que SUS estamos falando, vinculado a que projeto político?
Em contextos marcadamente estruturados no patriarcado, classe, racismo, e seus tentáculos, para dizer basta é preciso compreender, romper com a naturalização, estabelecer novas bases, estruturas, condições, desconstruir ideias, ideologias, privilégios. Que todas, todos, todes portam e emitem conhecimento. Compreender que falar de pobreza, necessariamente implica no seu contraponto, a riqueza; que relações raciais não se referem somente ao ser negro, racialização vinculada ao processo histórico de bases materiais.
Implica também compreender o papel social de ser branco, a ideologia da supremacia racial branca, a sociedade capitalista, o patriarcado, relações de poder, privilégios e desvantagens socialmente construídos.
“A pobreza, a miséria e, principalmente, a desigualdade são fenômenos que remontam à própria criação do Brasil, e têm raízes na questão racial. Os quase quatro séculos de escravidão forjaram as condições para o aparecimento, o fortalecimento e o consequente protagonismo do racismo como fator de organização e estruturação das relações sociais no país. Desse modo, o racismo consolidou-se como a ideologia que diferencia e hierarquiza as pessoas em uma escala de valores que tem como polo positivo o biotipo branco caucasiano e como polo negativo o biotipo negro africano. É sob essa valoração que a sociedade brasileira organiza e opera – e é nela que se baseia o reconhecimento social do indivíduo, historicamente construído e que explica a perpetuação da desigualdade.” Mário Theodoro, A sociedade desigual – Racismo e branquitude na formação do Brasil.
A saúde como direito de todos e dever do Estado, garantida através de políticas sociais e econômicas se contrapõe a este projeto, e requer a instituição de projeto político não subordinado ao capital, ao mercado. Direito.
… o grande desafio que se apresenta para pesquisadores, estudiosos e gestores públicos é de se debruçar sobre essa nova lógica de relação entre o público e o privado na saúde, e sua articulação com o processo de acumulação do capital na contemporaneidade. Enquanto isto, faz-se necessária a reconquista das diretrizes e princípios do SUS em um novo eixo contraditório de articulações: saúde como processo de acumulação e reprodução do capital; saúde e desenvolvimento científico e tecnológico; saúde e democratização do seu acesso como direito (Cohn, 2013).
[COHN, A. Reformas da saúde e desenvolvimento: desafios para a articulação entre direito à saúde e cidadania. In: COHN, A. (Org.) Saúde, cidadania e desenvolvimento. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 222- 236.]
As terceirizações dos serviços de saúde expressam a formulação do projeto neoliberal na saúde em contraponto à gestão estatal, considerada ineficaz. Trata-se de projeto político de mercado, transvertido de racionalidade técnica, gerenciamento.
Que princípios são rompidos?
• Universalização
• Equidade
• Integralidade – atendimento de todas necessidades – promoção e prevenção; tratamento e reabilitação…
Que diretrizes?
• Regionalização
• Hierarquização
• Participação Social
• Descentralização
• Intersetorialidade
O que e como consolidar?
Analisemos o pensar/agir no SUS em Cuiabá:
Exemplificar:
• Participação e controle social – falar dessa conferência e o conhecimento da população. Conselhos Gestores. Comunicação. Como mudar?
• Plano Municipal de Saúde – utilizamos dados desagregados por raça/cor, território para estabelecer metas de superação das desigualdades? O que implica saber das desigualdades em saúde e a prestação de serviços ofertada (falar mortalidade materna – Rede Alyne Pimentel). Quem fica de fora? Quem retorna, monitoramento, etc.)
• Como o planejamento e gestão são incorporados na dinâmica das ações de saúde nos serviços de atenção saúde, na promoção, prevenção, reabilitação, … no território/Intersetorialidade (exemplificar impacto do bolsa família).
• Carreira da saúde – distintos vínculos X carreira de estado – gestão de estado, exemplo ministério público, defensoria, etc.
• O que conhecemos dos contratos de terceirização do SUS?
São as montanhas a serem escaladas. Podemos.
Eliane Potiguara
(Escritora Indígena)
Identidade Indígena
Em memória de meus Avós
… Mas não sou eu só
Não somos dez, cem ou mil
Que brilharemos no palco da História.
Seremos milhões, unidos como cardume
E não precisaremos mais sair pelo mundo
Embebedados pelo sufoco do massacre
A chorar e derramar preciosas lágrimas
Por quem não nos tem respeito.
[Parte do poema Identidade Indígena, presente no livro Metade cara, metade máscara]
Por isso marchamos por um projeto político pela Reparação e Bem-viver: II Marcha de Mulheres Negras – 25/11/25. Sou grata pelo oportuno diálogo.