Tecendo Democracias e Territórios

Guardiãs da semente: Mulheres costurando territórios-bem-viver

O encontro das águas as fortalece.
Uma chama não perde nada ao acender a outra.

Lições ancestrais mais antigas que a memória.

Pensando em como começar essa conversa, e sabendo que não conto com o auxílio do mormaço que acontece nos encontros em carne e osso, achei por bem nomear Dona Valdizia. Ela é uma sábia mulher, com mais de seis décadas de teimosia, com quem tenho o privilégio de conviver todas as quartas-feiras no espaço do curso de formação de agentes populares de saúde comunitária, numa quebrada da periferia sudoeste de São Paulo. Entre as muitas coisas que ela sabe, costurar é uma de suas artes.

É com a bênção de minhas mais velhas que compartilho nesta escrita, que pretende ser porta para trocas e pontes entre nós.

Quem costura, na pobreza, raramente escolhe os tecidos: trabalha com o que a vida dá, com aquilo que a estrada põe no caminho. Mas se valoriza muito a boa feitura dos pontos, a força das linhas, a regularidade e a beleza dos nós.

Tenho uma trajetória de militância que se iniciou há 27 anos, quando eu tinha 13 e vivia em minha quebrada de origem, uma favela da cidade de Mauá, na Grande São Paulo. De lá para cá, atuei em coletivos de jovens, em coletivos de cultura periférica, ajudei a construir dois grandes movimentos que lutam por moradia por meio de ocupações urbanas e, nos últimos anos, tenho me aprofundado em experiências e reflexões que me conduzem à importância de que territórios e projetos de mundo novo sejam protagonizados em sua construção e narrados pelas vozes de mulheres faveladas, negras, periféricas, indígenas e afro-indígenas.

Isso se dá porque compreender o passado é mais do que olhar para ele — trata-se de refazer um caminho para o futuro em marcha a ré, perseguindo as pegadas que nos levam a entender por que e como o presente se apresenta da maneira como o conhecemos. Alguns dizem que é impossível mudar o passado. Essa ideia está na base do pensamento ocidental branco, que se relaciona com o tempo como se ele fosse uma linha reta que nos afasta, a cada dia, daquilo que fomos.

Mas, como uma mulher afro-indígena, carrego em mim outras possibilidades temporais — possibilidades de tempo cíclico, espiralado —, de modo que o passado é o futuro e o futuro é o presente. Compreender o passado, a partir dessas outras maneiras de ver o mundo, nos permite conferir ao que já passou significados novos e tirar disso lições que guiam nossos passos no agora. Mas como conhecer e compreender o passado se nossa história foi roubada de nós?

Nosso passado foi colonizado, e a colonização chegou a estas terras trazendo, nas caravelas portuguesas, o racismo e o patriarcado, o apagamento e a distorção de culturas inteiras, relegando os povos originários e os africanos escravizados a um lugar de subalternidade.

Essa herança de opressão se manifesta na marginalização das vozes de mulheres racializadas que, desde sempre, desempenharam papéis centrais em suas comunidades, viabilizando a vida onde ela é mais atacada — seja pela expulsão de nossos territórios, seja pela violência das armas ou pela violência cotidiana da fome e da desumanização.

Como nas histórias que contamos às crianças, todo tesouro escondido possui guardiões que o protegem. Nesse caso, quem resguarda o tesouro de nosso passado histórico são guardiãs — mulheres em nada parecidas com os heróis supermachos dos filmes. São guardiãs amorosas e bravas, fortes e frágeis, oprimidas, subalternizadas, que conhecem o peso da violência sobre seus corpos e vidas. A nossa resistência, como mulheres empobrecidas e racializadas, é palpável nas histórias que moldaram nossas comunidades. Nós não apenas sobrevivemos — pusemos em andamento uma das maiores tecnologias humanas que a diáspora ensinou com suas dores: refizemos comunidade em meio a contextos de profunda violência e depredação da vida humana e mais-que-humana.

Fazer e refazer comunidade, costurar o tecido da vida com aquilo que a estrada pôs no caminho, é um saber que poderia ser reconhecido com diplomas e títulos — mas não será, porque os títulos e diplomas obedecem à lógica patriarcal da competição, do mérito e do sacrifício. Ainda assim, mesmo sem reconhecimento, esse saber que nos habita é fundamental para a construção de um futuro digno, justo e feliz.

Territórios de vida

Quando penso em territórios, não me ocorrem apenas os limites geográficos que demarcam um lugar num mapa, não. Um território é uma vida, um agente, uma força vital que participa de quem somos, de nossa identidade e de nosso modo de viver e produzir comunidade. São lugares que entrelaçam histórias, saberes e desejos. As favelas e periferias são locais de resistência e de construção de comunidade. As mulheres que habitam esses espaços são as guardiãs da memória e da cultura — e, sem seus saberes, sem seu lugar à proa de nosso navio, não podemos ir muito longe.

As favelas e periferias das grandes cidades brasileiras formaram-se como arranjos territoriais oriundos de muitos choques, despejos e novas tentativas de reconfiguração da vida — em situações quase sempre piores.

Esses territórios encerram uma justaposição do tempo em camadas, onde cada geração de mulheres mantém acesa a memória de um massacre ao qual sobreviveu: da escravidão da chibata à escravidão doméstica (entregues às famílias ricas como empregadas); do casamento na adolescência, fugindo da fome ou da sede, ao trabalho nas fábricas; do cárcere, abandonadas, à dor de recolher nalgum beco o corpo de seu filho, assassinado pelas balas estatais — já em regime democrático; das escolas — disciplinadoras de corpos, encarceradoras de ideias, sexistas e violentas como as ruas, e cheias de grades, como as prisões.

Em nossa carne estão as cicatrizes da violência como principal ferramenta da acumulação e do progresso — evidenciada em tempos de crise, mas que atravessa séculos.

Mas guardamos em nós também a plena consciência (em ato, mais que em palavras) de que cada uma de nossas necessidades depende, inegavelmente, de outras pessoas, de outros organismos, de outras vidas. Nem mesmo a nossa sede pode ser resolvida sem a colaboração de um rio – que deveria ter assegurados os seus direitos humanos. O nosso bem viver depende, insoluvelmente, da existência de outras vidas às quais nos associamos de muitas formas. Essas formas nem sempre são escolhidas; para a maioria de nós, elas são impostas e tendem a reproduzir um mecanismo de explorar e ser explorados: o trabalho escondido por trás da comida em nossas panelas, por trás da casa limpa, o assassinato do rio por trás da mineração, o trabalho análogo à escravidão por trás das roupas “baratas”, a transfobia por trás das celebrações da tradicional família brasileira, o sangue derramado por trás da monocultura do agro, o rastro do progresso.

A consciência em ato de nossa interdependência é parte das sementes de bem viver que as guardiãs preservam a duras penas, porque as pessoas que vivem sobrecarregadas pelo trabalho de cuidados movem a própria existência num terreno muito mais próximo dos rastros que das aparências. Somos mulheres brutalmente espoliadas que preservam a consciência de que os frangos não nascem já embalados na prateleira dos supermercados. Nossas vidas estão mais perto do custo real das coisas porque fazemos, nós pobres, parte do custo.

Saber quanto custa não diz respeito ao preço, mas aos danos que uma escolha pode causar; é buscar perceber a relação entre coisas que parecem invisíveis. Invisíveis como as 125 milhões de pessoas que sofrem com a fome no Brasil; invisíveis como as milhões de vidas (humanas e não humanas) que foram expulsas ou exterminadas com o desmatamento de seus lugares. Enxergar relações que parecem invisíveis é perguntar-se quem são os beneficiados pelo saldo (positivo?) da balança comercial, que chegou a 48 bilhões de dólares, apoiada na soja, no petróleo, no minério de ferro e no milho – os quatro principais produtos exportados pelo Brasil.

No rastro da investigação do quanto custa, encontraremos 730 mil pessoas presas, 730 mil famílias diretamente impactadas pelo encarceramento e dezenas de milhões de pobres fora das grades que também têm a vida gerenciada pelo mecanismo punitivista de controle e manutenção da ordem. Seguindo o rastro, encontraremos também ídolos do futebol – elemento simbólico dos mais explorados na tentativa de forjar uma identidade nacional brasileira – comendo carne salpicada de ouro enquanto garimpeiros estupram meninas Yanomami.

Saber que nossas vidas dependem, insoluvelmente, de todas as outras que habitam esse chão e saber o custo real da fantasia dos ricos é o que faz com que as mulheres sejam capazes de – mesmo em meio ao tiroteio da modernidade – produzir comunidade e defender a vida.

Sob a névoa de uma leitura patriarcal do que são as lutas, do que é organizar-se, do que é ou não político, estão ocultos os ativismos de muitas mulheres. Esses ativismos invisibilizados – assim como o trabalho reprodutivo e de cuidado – desaparecem da narrativa que nomeia as resistências. Ao mesmo tempo, eles transferem energias que alimentam representantes homens e estruturas de organização hierárquicas e adoecedoras, mesmo entre setores progressistas. Seria como mais um momento de extrativismo patriarcal, mas ocorrendo em espaços pretensamente forjados para combater a lógica extrativa do capitalismo.

São justamente esses fazeres políticos invisibilizados que permitiram que estivéssemos vivas até hoje: os saberes das mulheres que se ajudam no cuidado das crianças, já que não podem esperar do Estado mais que violência; os saberes que proliferam hortas comunitárias em busca de matar a fome plantando em caixotes quando nos roubaram da terra; os saberes dos chás que curam quando a medicina dos homens nos trata como lixo; os saberes que, em ato, evidenciam que viver é possível apenas em comunhão e aliança com a vida que nos rodeia.
Ancoradas nessas sabedorias, é que as mulheres fazem e refazem comunidade, onde quer que estejam, produzindo territórios de vida em tempos de morte.

Direito à cidade ou direito à comunidade?

Olha, quem nasceu do desterramento, quem se viu sem lugar e sem passado – como o povo favelado – pode ser levado a lutar por tudo aquilo que lhe foi e é negado, com o agravante de ignorar a própria origem e as possibilidades existentes para além do arranjo negador.

Eu mesma estive bem enfiada nessas lutas. Como favelada, a cidade ou cidadania que lhe acompanha me eram negadas e eu, ainda sem compreender, fazia lutas pelo direito à cidade. Mas é uma luta que dá um nó no avesso. Veja, eu denunciava a cidade oficial como saqueadora da força vital das favelas e reivindicava direito à cidade. Não pensava ainda que a luta que se dá sem ter clareza dos limites do direito acaba engolida por sua gramática. Não pensava ainda que exigir dado reconhecimento a determinados territórios podia levar a que mais porções de nossas vidas estivessem reguladas por um poder alheio a nós, um poder entregue a mãos estatais muito distantes do cotidiano comunitário e, na maioria das vezes, incapaz de compreendê-lo.

A operação é a seguinte: não reconhecem minha humanidade e quero tê-la reconhecida, desatenta ao fato de que isso pode me levar a ser parte dos humanos com poder de chancela. Eu nunca quis ser parte desse grupo e, no caso da cidade, me pus a pensar que esta palavra talvez não designasse exatamente o que eu desejava para mim e para meu povo. Mesmo quando me insistiam que a cidade grega, que a pólis, que o sentido de ágora política, blá, blá, blá, eu percebia essa origem colonial dos modelos que nunca compreenderam como complexas as maneiras pré-coloniais que se desenrolaram nesta terra mal chamada Brasil. Só se pode compreender isso buscando o passado.

Um dos maiores superpoderes que uma pessoa pode alcançar é o de conhecer algo de seu passado. Não é à toa que pessoas brancas deram e dão tanto valor a sobrenomes, histórias de imigração e origens familiares. Mas para quem é pobre e racializado, isso é coisa difícil. Eu tive a sorte de conviver com avó e bisavó materna, pude aproveitar e alimentar a minha curiosidade com elas, aprender coisas, guardar pistas que, depois de adulta, me deram caminhos por onde procurar.

A favela é filha de quem? É a pergunta-guia de um de meus cursos de formação. Entre muitas coisas, ela é filha da diáspora, da migração, das aldeias, quilombos e roças que entregaram seus filhos ao moinho de gente que botou de pé e fez funcionar a cidade industrial. A favela – e não a cidade oficial – é a expressão da pluralidade étnica que este país possui dentro destas fronteiras desenhadas por colonizadores: os expulsos, despejados, arrancados de seu lugar que tiveram de reconstruir comunidade mesmo que sobre escombros e em meio a condições cada vez mais adversas.

Somos um cruzamento de ancestralidades banidas por séculos do catálogo Brasil. O encontro de povos em busca de viver e sobreviver, carregando cosmovisões, fés distintas, ritmos, modos de falar e de comer. Povos que se fizeram vizinhos pela força da pobreza e da exploração, desterrados, condenados da terra (mas não por ela), como diria Fanon.

O povo sente o território, está atravessado por ele e o atravessa; sai correndo do trabalho e chega feliz em casa – mesmo que seja um barraco de madeira. O povo sente o território porque vive comunitariamente nele, é diferente do prédio, diferente do condomínio fechado.

É saber até mesmo as fofocas que você não quer, andar pelas ruas encontrando conhecidos e descobrindo acontecimentos, ter de ajudar a tirar água da enchente até nas casas de gente que você não gosta. A gente sente o território primeiro, vive ele primeiro e racionaliza esse saber depois. Esse modo de vida é parte do passado ancestral revivido e proliferado continuamente pelas mulheres no presente comunitário.

A favela tem muito o que ensinar à cidade sobre o que é ser um território comunitário. As mulheres faveladas – mesmo sem terra – cultivaram memórias úteis para a proliferação da vida. Elas mantiveram vivas algumas sabedorias da terra, ainda que para isso tivessem de plantar em caixotes de feira ou nas lajes. Compreendendo nossa interdependência com tudo o que nos rodeia, humano e mais que humano, as mulheres racializadas levam adiante as lutas mais importantes em defesa da vida, lutas que revelam a importância de questões que ficam em segundo plano nos planos de mudança construídos pelos homens.

As mulheres faveladas e suas narrativas sobre território, vida e desejos para o amanhã possuem muito a ensinar sobre como construir territórios comunitários de vida e, de alguma maneira, em seu fazer – profundamente político – a produção de comunidade, de convívio solidário e ajuda mútua é o que permitirá o nascimento de territórios de vida, de afeto e bem viver. Não sabemos qual o nome desses territórios que virão a nascer como fruto de nossa busca, mas sabemos que só em comunidade, só em comunhão, é que eles podem florescer – e as mulheres são bússolas assertivas conduzindo esse navegar.

A cidade é o lugar construído pelas narrativas dos homens, e nela há uma série de “abundâncias e facilidades” que nem todo mundo está disposto a largar. Qual o custo das lindas avenidas decoradas em luzes nos bairros chiques? Das regiões cômodas com comércios ou serviços que não fecham nunca? Das diaristas baratas – que todo mundo chama de “a moça que me ajuda lá em casa”? Qual o custo de consumir tanta água sem produzir nenhuma? De consumir tanto alimento sem produzir nenhum? De consumir tanta energia que só mesmo destruindo a Amazônia, os rios e os territórios invadidos pela monocultura de placas solares e moinhos eólicos? Qual o custo de receber alimentos prontos ou produtos da China sem sair de casa?


Se o trabalho de uma diarista fosse remunerado como o de um juiz ou de um professor renomado em alguma universidade pública, quem teria diaristas em casa? A resposta a essa questão escancara que territórios produzidos em base ao pensamento branco patriarcal estão marcados por hierarquias que terceirizam as tarefas de viver que deveriam estar sob os cuidados de todo vivente; evidencia que a cidade, mais além de congregar abundâncias, é uma experiência territorial de saque e aprisionamento das vidas.

Se o sonho do oprimido for ser o opressor, nossos planos estão dirigidos a conseguir chegar ao topo e viver a vida que os ricos e as classes médias vivem, irresponsavelmente sugando e extraindo. Se, por outro lado, deixarmos que os saberes das mulheres pobres, faveladas, negras, indígenas e afroindígenas nos conduzam, nosso sonho terá em seu centro o cuidado com as infâncias, o amparo aos mais velhos, o respeito ao corpo e suas marés, a amizade com as plantas, a morada segura e o abrigo de paz, o tempo livre dedicado a aprender com os animais, o auxílio a quem nos pede ajuda e os passos firmes na terra que nos viu crescer, com a confiança de que ela, assim como as mulheres, guarda memórias e tesouros preciosos para enfrentar dias de tamanha brutalidade e violência.

Quem sabe, tenhamos coragem de nos abrir para essa egrégora de comadres em busca de bem viver, para nós mesmas e para nosso povo?

Com as mulheres à proa do nosso navio comunitário, nós talvez possamos escapar.


Helena Silvestre – Ativista afro-indígena de lutas territoriais e feministas em favelas, ocupações urbanas e periferias. Escritora com quatro livros publicados e finalista do Prêmio Jabuti 2020 e do Global Black Woman’s Non-fiction Manuscript Prize em 2024. Psicanalista em formação, integra o projeto EscutaCrusp e realiza graduação em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. Editora da Revista Amazonas, é educadora popular na Escola Feminista Abya Yala e pesquisadora do coletivo internacional La Laboratoria.

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