Geledés na ONU

Justiça racial deve estar no centro do desenvolvimento econômico

A necessidade urgente de alinhar os compromissos globais de financiamento do desenvolvimento à agenda da justiça racial esteve no cerne da intervenção de Letícia Leobet, assessora internacional de Geledés – Instituto da Mulher Negra, durante o evento “Financiamento para uma utopia possível: Igualdade étnico-racial e o ODS 18”, que aconteceu nesta quarta-feira, 2, em Sevilha, na Espanha.

O evento fez parte da programação paralela da Quarta Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FfD4) e contou com a participação de Lavito Bacarissa, Secretário Executivo na Comissão Nacional para os ODS, Luciana Servo, presidenta do Ipea, Kleytton Morais Maya, presidente da Fundação Banco do Brasil, Maya Quilolo, quilombola e fundadora do Projeto Ipori, e a própria Letícia Leobet, que discursou com foco na internacionalização do ODS 18 e o desafio da justiça reparatória.

Leobet abriu sua fala sublinhando que a participação de Geledés em Sevilha é a continuidade de um caminho histórico e estratégico de incidência. “Nossa presença aqui é continuidade de um processo mais amplo, que no longo prazo vem desde a Conferência de Durban e, no curto prazo, inclui os avanços nas negociações preparatórias em Nova York e, mais recentemente, em Bonn, durante a Convenção do Clima”, afirmou.

Com ênfase, ela destacou que, pela primeira vez, a população afrodescendente foi mencionada oficialmente nos documentos da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), fato considerado por ela um marco.

Ressaltou ainda uma grande conquista para o movimento negro: o recém-criado Stakeholder Group of People of African Descent, mecanismo de participação da sociedade civil global reconhecido no ECOSOC, cuja coordenação é compartilhada por Geledés. Atuando como uma das coordenadoras desse mecanismo, Leobet destacou a importância de que “a presença afrodescendente esteja refletida e institucionalizada de forma concreta em todas as agendas globais”.

Nesse contexto, ela fez críticas duras à Agenda 2030 ao considerar que a desigualdade racial foi ignorada como uma estrutura global. “O Brasil tem dado um primeiro passo relevante ao propor o ODS 18 como um objetivo específico para a Igualdade Étnico-Racial. Mas agora precisamos que esse objetivo se traduza em ações concretas.”

Leobet sugeriu que a internacionalização do ODS 18 seja capitaneada pelo Itamaraty, com o Brasil encampando a liderança de um plano de ação em foros como a ONU, o G20 e a Convenção do Clima. “A FfD4 é um desses espaços prioritários. Aqui, debatemos o futuro da arquitetura financeira global. E precisamos reconhecer: a desigualdade racial é também uma desigualdade econômica. As populações afrodescendentes seguem sistematicamente excluídas do acesso a financiamentos, às cadeias de valor globais, ao reconhecimento dos seus territórios como sujeitos de direitos.”

Para a representante de Geledés, o desenvolvimento sustentável só será alcançado se estiver alicerçado em uma arquitetura financeira antirracista, o que, segundo ela, implicaria na iniciativa de os bancos multilaterais e nacionais de desenvolvimento assumirem mecanismos diretos, acessíveis e de longo prazo voltados às comunidades afrodescendentes — em especial, às mulheres negras. “Como podemos falar em desenvolvimento sem investir em quem historicamente sustenta a base da economia popular, do cuidado e da produção comunitária?”, questionou.

Assim como vem ocorrendo em outros fóruns internacionais, Geledés voltou a cobrar a coleta de dados desagregados por raça, gênero e território como uma ferramenta indispensável para a construção de políticas públicas eficazes.

Mas como Leobet bem alertou, há resistências explícitas à pauta racial em muitos governos e espaços multilaterais. “É comum ouvirmos que essa é uma questão ‘específica do Brasil’. Outros países, mesmo reconhecendo a existência da desigualdade, preferem não nomeá-la”, disse. Para enfrentar esse cenário, ela defendeu que o ODS 18 seja compreendido como uma porta de entrada para a internacionalização da agenda racial, transformando-se em um compromisso compartilhado pelos países do Sul global.

Ao citar a presidência brasileira do G20, em sequência África do Sul e  depois Estados Unidos — no que a assessora chamou de troika —, Leobet reforçou que esse contexto representa uma oportunidade única para colocar a justiça racial no centro dos acordos multilaterais. “São três países profundamente marcados pelo racismo estrutural e por lutas históricas dos movimentos negros. Esse contexto não pode passar despercebido. Ele deve se refletir nos compromissos firmados nesses espaços. O ODS 18 pode e deve oferecer essa lente de justiça racial para os processos multilaterais, ampliando a compreensão de que o enfrentamento ao racismo é uma condição indispensável para qualquer proposta real de transformação.”

A assessora internacional de Geledés finalizou sua intervenção convocando as organizações do Sul global a fortalecerem alianças políticas e institucionais. “A crise climática, a insegurança alimentar, a violência econômica e de gênero, a exclusão digital não são neutras. Elas têm raça, território, idade, etnia e gênero. E se estamos falando de uma arquitetura financeira voltada ao desenvolvimento sustentável, ela precisa ser, antes de tudo, antirracista”, concluiu.

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