Arquivo Pessoal
Sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio
Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo
Misture bem essa química e pronto
(Diário De Um Detento, Racionais MC’s, 1997).
No próximo dia 12 de agosto será o Dia Internacional da Juventude, uma data estabelecida pela Organização das Nações Unidas há cerca de 20 anos. No Brasil, um longo processo de reconhecimento do jovem como sujeito de direitos se deu nos últimos 15 anos, embora o país tivesse desde 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual rege o conjunto de direitos voltados ao público de 0 a 18 anos, havia uma necessidade de reconhecer aqueles e aquelas que estavam entre a adolescência e a vida adulta, requerendo uma série de demandas ao Estado e a sociedade e ainda sem instrumentos legais que as validassem.
Com o desenvolvimento de uma institucionalidade para gestão e monitoramento de políticas públicas de juventude, como a Secretaria Nacional de Juventude e o Conselho Nacional de Juventude criadas em 2005 (Governo Lula), ampliou-se a mobilização e participação da juventude na agenda pública, que vinha em uma crescente desde os anos 1990 com as manifestações culturais como o rapper, as pastorais juvenis, as organizações de bases comunitárias, entre outras.
Grupos e organizações de juventude nascidas antes, durante e depois desse período, movimentaram-se em torno da criação e aprovação da Proposta de Emenda Constitucional que incluía a palavra “Juventude” na Constituição Brasileira (PEC da Juventude) que veio a ser promulgada em 2010 (em julho fez 10 anos da Emenda Constitucional nº 65/2010). E, posteriormente, o Estatuto da Juventude colocaria em evidência os direitos das pessoas na faixa etária entre 15 e 29 anos.
Tudo isso parece não ter sido suficiente para a juventude, especialmente a negra. Enquanto que, por um lado a juventude continuava articulada em coletivos, redes e fóruns, por outro, a desigualdade vinha numa crescente, com as altas taxas de desemprego, o trabalho precário, o não acesso à cidade, o retrocesso de direitos, a exclusão educacional, o frequente risco de morte, a morte em si.
A morte parece estar articulada com uma série de tecnologias e processos quando se trata do sujeito jovem. O termo Necropolítica (necro = morte) vem se popularizando nos últimos anos, tanto dentro da academia, entre pesquisadores no seu lugar de saber-poder, quanto também entre a sociedade, intelectuais, militantes de movimentos sociais (sobretudo o movimento negro), entre outros. Mas, o que é mesmo essa política de morte? Como ela funciona? Quem executa? Qual o impacto dela na vida da juventude brasileira?
Achille Mbembe, filósofo africano, publicou um ensaio em 2003 com o título de Necropolítica e ali, como em outras obras (Políticas da Inimizade, Sair da Grande Noite, Crítica da Razão Negra, etc.), ele dialoga sobre uma organização do poder para a produção da morte. A associação dos conceitos de Biopoder (Foucault), Estado de Exceção e Estado de Sítio (Carl Schmitt, Agamben), articulados ao racismo e ao neoliberalismo, constituem o que Mbembe elabora como “Necropolítica”. Importante destacar o papel do racismo como uma tecnologia fundamental na atuação do “fazer morrer e deixar viver”, na produção do “inimigo” que precisa ser contido ou exterminado, e na constituição de hierarquias.
Cabe enfatizar que a morte não se refere apenas ao sentido da retirada da vida, mas também a uma vida em exposição constante ao risco da morte, com pouca ou nenhuma perspectiva de continuidade e sustentação, uma vida na qual a exclusão e a rejeição estão presentes cotidianamente. Nesse sentido, pode-se dizer que, ao descuidar de demandas apresentadas pela juventude e/ou mesmo sendo criador especificamente de diversas problemáticas, o Estado produz a morte da juventude.
Perguntam se eu não me arrependo do que tenho dito
Mas não se arrependem de Jenifers, Kauãs e Ágathas
Nós aqui carregando o peso do mundo nas costas
Por coisas que nem o peso na sua consciência paga
(Hoje Não, Djonga, 2020).
Essa política de morte impacta de maneira substancial no desenvolvimento biopsicossocial da juventude, das quais negritamos aqui pelo menos três perspectivas:
Os avanços no campo das Políticas Sociais e Políticas Públicas de Juventude tidas entre 2005 e 2016, apesar de, em suas descrições, considerarem o potencial transformador e buscarem fortalecer a autonomia social e econômica desse segmento populacional, não têm sido o bastante para minimizar a ineficiência histórica do Estado diante dos/das jovens, ainda menos para a juventude negra, mesmo com toda a mobilização que esta fez (e faz). Pesa-se que, nacionalmente, as políticas públicas de juventude vêm sofrendo desmontes nos últimos quatro anos (Governo Temer e Governo Bolsonaro).
Os movimentos sociais e movimentos negros, sobretudo os de juventudes negras e de mulheres negras vêm pautando o enfrentamento e escancaramento dessa política de morte que atinge com primazia a juventude negra e acaba impactando suas famílias e comunidades. São as mães negras que estão à frente de coletivos, organizações, associações de familiares de vítimas de homicídios no Rio de Janeiro, no Ceará, na Bahia, entre outros lugares. Os índices de violência contra a juventude no Brasil são alarmantes e legislações ainda vigentes, como o Auto de Resistência, são capazes de “justificar” o injustificável, como por exemplo, atirar em um jovem por confundir o guarda-chuva que ele portava com um fuzil.
A juventude brasileira ainda resiste diante de tantas adversidades. Ecoam suas vidas, vozes, e vivências com arte, com debate, com mobilização nas ruas e nas redes. Fazem de seu cotidiano arte, para continuar encontrando sentido no “dia depois do outro”. São os slams, as posses, os grupos, as redes e os movimentos que promovem escapatórias e suspiros na rotina de opressões e privações. Entre si dialogam, produzem e criam outras realidades. Não desistem e buscam por saídas. O rap é esteira disso. Melhor seria que os versos de Racionais MC’s não tivessem nenhuma relação com o que canta Djonga hoje, por exemplo, mesmo mais de 20 anos depois. Nossa realidade é ainda complexa e para uma efetiva transformação ainda temos caminhos a trilhar, e trilhamos, cientes dos desafios. Relembrando Conceição Evaristo, “eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”.
¹ Jenair Alves da Silva é Psicóloga (UFRN), Mestre em Estudos Urbanos e Regionais – Estado e Políticas Públicas (UFRN) e Doutoranda em Psicologia (UFRN). É pesquisadora associada ao Observatório Infantojuvenil em Contextos de Violência (OBIJUV/UFRN), é membro do Coletivo As Carolinas, atualmente participa do Programa Marielle Franco (Fundo Baobá) e compõe a Coletiva Negras que Movem.
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