A cantora, atriz e deputada estadual Leci Brandão - Foto: Leandro Almeida/Facebook Leci Brandão
Leci Brandão chega aos 80 anos de idade e 50 de carreira como quem chega a uma roda de samba sua: com desenvoltura, alegria e muita festa. A artista atravessa gerações, celebra vidas e denuncia injustiças.
Uma mulher nascida em Madureira, criada em Vila Isabel, tornou-se a primeira mulher a compor na ala da Mangueira, escola da qual é baluarte. Com letras que falavam do amor, da negritude, da opressão, dos orixás, a compositora sempre trouxe na veia de sua obra a crítica social.
Vê-la chegar aos 80 anos festejada com um documentário sobre sua vida (“Leci”, dirigido por Anderson Lima), com inúmeras homenagens e amor do povo, é algo que emociona a todas nós, mulheres negras.
Como disse Cida Bento, nesta mesma Folha, quando a deputada recebeu o colar de honra ao mérito legislativo do estado de São Paulo, “Leci Brandão permanece como uma presença inspiradora para todas nós, brasileiras e brasileiros —em particular as mulheres negras—, seja na arte, seja na cultura, seja na política de São Paulo e do Brasil”.
Há, em Leci Brandão, um outro lado seu que nos eleva: o amor público por sua mãe, dona Lecy de Assumpção Brandão. Como a própria deputada, sambista e compositora afirmou em uma entrevista: “Dona Lecy foi a pessoa que mais me inspirou nesta vida. Tenho dois sambas, ‘As Coisas que Mamãe me Ensinou’ e ‘A Filha da Dona Lecy’, que retratam o que ela representa para mim. Ela partiu em 2019, mas, ainda hoje, sinto muito a falta dela”.
“O trabalho da minha mãe era varrer sala de aula. Ela varria, e eu, filha única, ajudava. Varríamos de manhã, à tarde e à noite, para a turma do supletivo. De varrer sala de aula, modéstia à parte, eu entendo bem”, continua na entrevista.
O amor ao pai, seu Antônio Francisco da Silva, pude conhecer na dissertação de mestrado de Fernanda Kalianny Martins de Souza sobre sua vida, obra essa adaptada no livro “Filha de Dona Lecy”, publicado pela editora Gota .
Funcionário público administrativo no Hospital Souza Aguiar, seu Antônio foi uma grande influência musical. Ouvinte de Jamelão, Jacob do Bandolim e muita ópera, ele trazia a fartura para casa, na qual dona Lecy preparava delícias como bacalhau frito ao molho de cebola, pimentão e tomate.
Na sala de aula, Leci Brandão foi uma brilhante aluna e leitora assídua de jornais, hábito que conservou ao longo dos anos. Inclusive, leitora desta Folha. Quando gosta de uma coluna minha, Leci escreve para me cumprimentar.
Penso que escreve para outras colunistas negras e negros, pois é da sua personalidade segurar na mão e apoiar pessoas ao seu entorno. Leci não teve filhos, mas é madrinha de muita gente.
Cresci ouvindo seus sambas, que alegravam as festas no quintal de meus pais. Eles colecionavam os seus vinis e cantavam as músicas de cor. Até hoje, quando ouço algumas de suas canções, elas vêm embebidas com fumaça de churrasco misturada à alegria de dias felizes de um povo trabalhador; transmutavam o suor de dias longos em tardes risonhas com sardinhas assadas na brasa.
Com 50 anos de carreira, gravou dezenas de discos, ganhou o Prêmio da Música Brasileira várias vezes e esteve à frente de transmissões de desfiles, deixando a sua marca seja cantando, seja comentando o Carnaval.
Penso que tanto anunciou que estava nascendo um novo líder, o Zé do Caroço, que Leci talvez não tenha se dado conta que ela mesma foi uma líder em contínua ascendência, até representar o povo paulista na política como deputada estadual por já quase duas décadas.
Ao comemorar seus 80 anos, Leci permanece ativa na cena pública, falando o que precisa ser dito, como aconteceu há três semanas. Na ocasião, ela concedeu uma entrevista extensa a esta Folha. Como marca de sua vida, Leci foi certeira e conseguiu reconhecer, no pagode, um avanço onde o samba não foi: o canto de amor a mulheres negras.
Leci nos espera na Casa Natura Musical, em São Paulo, nos dias 8 e 9 do próximo mês, quando celebrará as cinco décadas de carreira no palco, na companhia de mestres do samba. Que sua luz continue iluminando o caminho de tantas gerações.
Esta coluna semanal completa seis anos, número simbólico para filhas de Oxóssi. Minha gratidão ao jornal e a Sérgio Dávila por esse espaço. Agradeço também a companhia de todos vocês nessa minha jornada. Axé!
Djamila Ribeiro – Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais