Luiz Silva (Cuti)
cota é só a gota
a derramar o copo
não a mágoa do corpo
mas energia represada
que agora se permite e voa
em secular esforço
de superar-se coisa e se fazer pessoa
cota é só a gota
apenas nota de longa pauta
a ser tocada
com o fino arco
em mãos calosas
cota é só a gota
a explodir o espanto
de se enxugar no riso
a imensidão do pranto
ela é só a gota
ruindo pela base
a torre de narciso
é só a gota
entusiasmo na rota
afirmativa
que ameniza as dores da saga
suas chagas de desigualdade amarga
cota é só a gota
meta de quem pagou e paga
desmedido preço de viver imposto
e agora exige
seu direito a voto
na partição do bolo
é só a gota
de um mar de dívidas
contraídas
pelos que sempre tornaram gorda a sua cota
cota é só a gota afrouxando botas
de um exército
para o exercício da eqüidade
cota não reforça derrota
equilibra
entre ponto de partida
e ponto de chegada
a vitória coletiva
reinventada.
Luiz Silva (Cuti) nasceu em Ourinhos-SP, e vive na capital. Formou-se em Letras (Português-Francês) na Universi-dade de São Paulo, em 1980. Mestre em Teoria da Literatura e Doutor em Literatura Brasileira pelo Instituto de Estudos da Linguagem – Unicamp (1999-2005). Foi um dos fundadores e membro do Quilombhoje-Literatura, de 1983 a 1994, e um dos criadores e mantenedores da série Cadernos Negros, de 1978 a 1993.
OBRAS: Poemas da carapinha; Batuque de tocaia. (poemas); Suspensão (teatro); Flash crioulo sobre o sangue e o sonho (poemas); Quizila (contos); A pelada peluda no Largo da Bola. (novela juvenil); Dois nós na noite e outras peças de teatro negro-brasileiro; Negros em contos; Um desafio submerso: Evocações, de Cruz e Sousa, e seus aspectos de construção poética. (dissertação de mestrado); Sanga (poemas);A consciência do impacto nas obras de Cruz e Sousa e de Lima Barreto (tese de doutorado); Negroesia. (poemas);Contos crespos; Moreninho, Neguinho, Pretinho (ensaio educativo).Além de obras em co-autoria, o escritor publicou poemas, contos, peças de teatro e ensaios em antologias brasileiras e estrangeiras.
escrevo a palavra
escravo
e cravo sem medo
o termo escravizado
em parte do meu passado
criei com meu sangue meus quilombos
crivei de liberdade o bucho da morte
e cravei para sempre em meu presente
a crença na vida.
TIÇÃO
teus olhos esbugalhados
ao brilho mais libertado
do sangue coagulado
no copo da escravidão
anseiam libertação
no passo da nova vida
na ida à competição
tição que acende o grito
no rito do novo negro
de alma e de coração
couraça de sofrimento
em busca do pensamento
de ser na integração
fogo vivo no terreiro
a noite sem cativeiro
nas cheias da hesitação
– do olhar amarelo branco –
com cerne esbugalhado
guloso de liberdade.
O SACI
O Saci tinha duas pernas
Uma dava passo africano
Com os anos
A cultura
Fez a ruptura.
O futuro está no saco
O futuro está nas trompas
O futuro no entanto já está nas ruas
O futuro das ruas é imediato
Sente fome e sede
frio e falta de afeto e vive no asfalto
O futuro das ruas vende amendoim pede esmolas
toma conta de automóveis mas não toma leite
O futuro das ruas anda descalço e vira malandro
O futuro das ruas apanha dos policiais se revolta é preso é morto
O futuro das ruas se deteriora aos nossos olhos passivos
E cegos no futuro do saco no futuro das trompas.