Atenção: essa é uma história real e foi publicada de forma fiel ao relato da vítima. As palavras utilizadas podem ser fortes e abordar atos sexuais e de violência.
Por Ana Toledo Do Vix
Fui abusada sexualmente dos 10 aos 15 anos. Hoje tenho 31, sou casada, tenho dois filhos e mesmo com este trauma tento de toda forma ser feliz.
Esse monstro infelizmente é meu pai. O cretino que se separou da minha mãe (hoje já falecida) quando eu tinha poucos meses de vida.
Ela sempre o amou, mas o relacionamento era conturbado. Foram idas e vindas durante muito tempo. Ele voltava para casa quando bem entendia, e ela aceitava. Anos se passaram nesse cenário. Até que, quando eu tinha 10 anos, minha mãe precisou fazer uma cirurgia e me deixou aos cuidados dele.
Foi quando o inferno começou. Nessa época, ele me violentou no meio de uma noite. Foi depois do jantar. Eu sentia muito sono, algo fora do normal. Deitei e adormeci. Só voltei a mim quando senti minhas roupas sendo tiradas. Tentei me mexer, mas o peso daquele monstro em cima de mim não deixava. Ele me penetrou e ali ficou. E eu, uma criança em desespero, sem conseguir pedir por socorro. Quem me ouviria? Minha boca estava tapada e eu não tinha forças.
Quando ele acabou, eu continuava sem forças e acabei adormecendo. Acordei no dia seguinte imunda, suja de sangue. Era como uma criança tendo sua infância interrompida. (Sim, infância, pois eu ainda brincava de bonecas).
Na manhã seguinte fui direto ao banheiro chorar. Minha mãe ainda estava no hospital e não tinha nenhum familiar para me ajudar. Passei a manhã trancada, até que na hora do almoço, ele, o monstro, arrebentou a porta e me avisou: “Se abrir a boca sobre o que aconteceu, mato a sua mãe envenenada e tu vai ficar comigo pra sempre!!!!”.
Mesmo assim, quando minha mãe voltou eu contei a ela. E óbvio que ela não acreditou. Disse que eu estava imaginando coisas, porque eu nunca aceitei as idas e vindas dele. Pedi ajuda e implorei a ela que me ajudasse, mas nada foi feito!
Quando ele foi embora novamente, dei Graças a Deus. Mas os meses passavam e ele voltava! Minha mãe trabalhava e quando eu chegava em casa depois da escola, ele me arrastava para cama e me fazia de sua boneca. Sempre com a mesma ameaça. Anos passaram e a história se repetia.
Até que um dia ele nunca mais voltou!
Quando eu estava com 23 anos, casada, ele apareceu. Eu já era uma mulher feita, mas carregava esse pavor que me atormenta até hoje! Minha mãe implorou para que eu o deixasse conhecer os netos. Contrariada e sem poder falar ao meu marido sobre o passado, aceitei e meu pai começou a fazer visitas frequentes aos meus filhos. Hoje, às vezes, ele ainda aparece e age como se nada nunca tivesse acontecido.
Eu nunca falei isso a ninguém. E até hoje me sinto suja e com repulsas.
Gostaria muito de denunciar. Queria que ele pagasse em prisão pelo que fez. Mas anos se passaram e me pergunto: será que isso é possível? Seria aceita uma denúncia tantos anos depois? Ele seria preso? Quando vou me curar deste pavor?
As histórias de abuso das repórteres do Bolsa de Mulher nos fizeram abrir os olhos para uma realidade alarmante: o perigo está mais próximo do que imaginamos. E também pudemos notar isso ao receber inúmeros relatos de leitoras que também passaram por diferentes tipos de violência contra a mulher.
São essas histórias tristes que fazem enxergar a importância em divulgar esses depoimentos. Acreditamos que, ao publicarmos, com o consentimento das vítimas e sem identificá-las, levantamos o debate de um tema tão importante que não pode ser ignorado. Esse é o nosso objetivo com este e outros relatos: conscientizar todas as mulheres vítimas de abusos, mães ou familiares dessas vítimas, para que se entenda que elas nunca são culpadas e que é preciso acreditar – ou ao menos questionar e investigar – quando uma criança se diz abusada.
Também alertamos para uma triste realidade: a maior parte dos abusos sexuais acontecem dentro de casa ou são cometidos por pessoas próximas às vítimas. Neste relato, o agressor é o próprio pai, assim como acontece na maioria dos casos, segundo dados de uma pesquisa do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. O estudo de 2011 apontou que quatro em cada dez crianças vítimas de abuso foram agredidas pelo próprio pai. O segundo agressor mais comum é o padrasto, seguido do tio como terceiro, vizinhos em quarto lugar e primos em quinto. Pessoas desconhecidas representam apenas 3% dos casos.
A dúvida dessa vítima é a mesma de muitas outras que nos escreveram e contaram casos semelhantes de estupro durante a infância. Durante a época em que sofrem essa violência, a maioria das crianças ou sente medo e não conta a ninguém, ou não são ouvidas pela família – já que a dificuldade de acreditar é grande, justamente pelos casos envolverem pessoas próximas. Mas e quando adulta, consciente do que sofreu, é possível denunciar o agressor?
De acordo com o advogado criminal Gabriel Huberman Tyles, o código penal brasileiro permite sim que o caso seja denunciado alguns anos após o ocorrido, mas tudo vai depender de quanto é esse tempo. Isso porque há um prazo para que o crime prescreva e deixe de valer alguma punição.
Vai depender de qual foi o crime cometido e qual seria a pena aplicada a ele. Tyles explica que, se o crime tiver pena prevista superior a 12 anos, ele prescreve em 20 anos. Isso vale para o caso de estupro de vulnerável (menor de 14 anos), cuja pena é de 15 anos. Ou seja, se esse for o crime, a vítima tem até 20 anos para denunciar seu agressor.
Porém, isso varia de acordo com cada caso – existe a possibilidade de prescrever em 16, 12, 8, 4 ou 3 anos. Por isso, o mais indicado é procurar por um advogado de confiança para que ele avalie em qual caso o crime cometido se encaixa, para que seja calculado quanto tempo você tem para denunciar.
Existem duas possibilidades diferentes que devem ser avaliadas para saber quando essa conta tem início.
Caso seja feita denúncia ainda durante a infância: se alguma queixa for feita ainda na época em que a criança foi abusada, o prazo para prescrição do crime começa a contar a partir do fato acontecido.
Caso a denúncia só seja feita após a maioridade: sem nenhuma ocorrência aberta anteriormente, a conta dos anos para que ele prescreva começa a partir de quando a vítima fizer 18 anos. No caso desse relato em questão, por exemplo, em que a vítima nunca prestou queixa de um “estupro de vulnerável” na infância (cuja pena máxima é de 15 anos e, portanto, o crime prescreve em 20), seria possível denunciar o agressor até a vítima completar 38 anos.
Falar sobre as experiências pelas quais passamos é um processo importante para aceitar o que aconteceu e também para superar. Além disso, é muito importante para ajudar outras pessoas a enfrentarem essa situação e conscientizar a população sobre o problema. Foi isso que pensamos ao decidir criar espaço no site para essas histórias. Também queremos saber a sua. Fique à vontade para se abrir. Envie um e-mail para a nossa redação (através do http://redacao@bolsademulher.com) e compartilhe o que você nunca contou para ninguém. Se você permitir, contamos sua história para outras leitoras, sem nenhuma identificação.