Artigos e Reflexões

Misoginia persistente reaparece na tragédia de Juliana

Um dos crimes mais brutais e emblemáticos do Rio de Janeiro completou 40 anos. Em 15 de junho de 1985, a adolescente Mônica Granuzzo Lopes Pereira, de 14 anos, despencou do sétimo andar de um edifício na Zona Sul da cidade, quando tentava fugir de uma tentativa de estupro por um homem sete anos mais velho. Eu estava prestes a completar 16 anos e me aterrorizava com uma menina da mesma faixa etária morrer por acreditar num paquera de boate. À época, boa parte da opinião pública se indignou menos com o assassino sedutor de menores e os dois amigos que o ajudaram a ocultar o cadáver, mais com a menina que aceitou ir ao apartamento do criminoso. Comovida com o caso, Ângela Ro Ro compôs “Mônica”, faixa do álbum “Eu desatino”, lançado no mesmo ano: Morreu violentada porque quis /Saía, falava, dançava /Podia estar quieta e ser feliz /Calada, acuada, castrada.

O refrão da canção-manifesto de Ro Ro voltou à memória por estes dias, menos pela efeméride do feminicídio (ora tipificado na Lei 13.104/2015) de Mônica, mais pela morte de Juliana de Souza Pereira Marins, no Monte Rinjani, na Indonésia. Quarenta anos se passaram, e parte da sociedade, agora na esteira das redes sociais, se apressou a condenar a jovem pela própria tragédia. Juliana, 26 anos, morreu porque quis viajar, conhecer o mundo, experimentar. Ficasse em casa, resignada, frustrada, viveria.

Impressiona que, por mais que o tempo passe, mulheres são invariavelmente culpadas por qualquer infortúnio que as alcance. Veste muitas peles a misoginia, expressão do ódio a meninas, moças, mulheres. Quando assassinada, escolheu mal o parceiro. Quando estuprada, usou roupa inadequada. Viajando sozinha, não poderia esperar final feliz.

© resgatejulianamarins/Instagram

Turista num país estrangeiro, Juliana fez o que devia: contratou uma agência, integrou-se a um grupo, seguiu o guia. Perdeu a vida morro abaixo, sem água, alimento ou agasalho. Foi vítima da falta de regramento, orientação e protocolo de resgate de um país precário. Morreu do descaso de um guia, uma agência, um parque, uma localidade. Um mínimo de organização, estaria viva para contar a história de como se acidentou e foi salva no caminho para assistir à belíssima alvorada no segundo vulcão mais alto da Indonésia, sítio sagrado para os nativos, desafiador para os aventureiros. Quem acompanha desastres e acidentes sabe que rapidez é essencial para salvar pessoas feridas.

Juliana passa à estatística de mortes evitáveis que alcançam também, mas não apenas, o turismo indonésio. No Brasil, o feriadão de Corpus Christi foi marcado por luto coletivo em Praia Grande (SC). Oito turistas perderam a vida quando um balão em que fariam um passeio pegou fogo. Quatro morreram por saltar do cesto em chamas, quatro foram carbonizados. As informações iniciais dão conta de fogo num maçarico, um extintor inoperante, um piloto sem autorização para voos comerciais. Uma semana antes, o pouso forçado de um balão em Boituva (SP) deixou uma jovem morta e 11 pessoas feridas.

No mesmo fim de semana, por pouco um passeio coletivo de stand up paddle não terminou em tragédia na Praia do Leme, Zona Sul do Rio. Uma ventania carregou praticantes mar adentro; 70 foram resgatados por bombeiros. Dias depois, tranca arrombada, a Prefeitura do Rio publicou o conjunto de regras para a atividade. Nos cinco primeiros meses de 2025, as ações de resgate em trilhas, montanhas e cachoeiras no Estado do Rio saltaram 67% sobre o ano anterior, segundo o Corpo de Bombeiros.

Depois da tragédia com Juliana, o Itamaraty informou que pretende atualizar o rol de recomendações para brasileiros em turismo de aventura no exterior. No site do Ministério das Relações Exteriores, há três páginas com orientações genéricas disponíveis desde 2021. Claramente insuficiente. Senadores discutiram durante a semana, Esperidião Amin (PP-SC) à frente, a realização de audiência pública com a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) para tratar de regras para o balonismo.

Jeanine Pires, ex-presidente da Embratur, informa que o Brasil já debateu, aprovou e regulamentou normas para o turismo de aventura, entre os anos de 2004 e 2010. A Lei Geral do Turismo foi promulgada em 2008; a regulação das atividades de aventura foi estabelecida no Decreto 7.381/2010:

— São normas obrigatórias para agências de turismo, padronizadas pela ABNT, em linha com o mercado internacional. O Brasil ajudou a desenvolver a ISO 21103. Há um conjunto claro de informações que as empresas devem fornecer aos visitantes para garantir transparência, segurança e a melhor experiência possível — diz.

Ter condutores qualificados, sistema de gestão de segurança e seguro para os clientes são as obrigações primeiras. Antes de contratar o serviço, os praticantes devem receber informações detalhadas sobre a atividade, incluindo nível de dificuldade, restrições de saúde, faixa etária recomendada, habilidades prévias. Depois, precisam ser informados sobre condições do tempo, lista de itens pessoais, plano de emergência, além de assinar o termo de conhecimento de riscos. Regramento há. Falta cumprir.

Share