Equanto Viver, Luto! - projeto Fazemos
No dia 24 de julho, o governo federal deu um passo histórico ao regulamentar o Plano Nacional de Cuidados (PNC), através do Decreto nº 12.562/2025 e sancionado pela Lei nº 15.069. Esta é a primeira vez que o Brasil reconhece o cuidado como um direito universal, compartilhado entre Estado, família, sociedade civil e setor privado. A iniciativa, batizada de “Brasil que Cuida”, tem potencial para transformar profundamente a vida das mulheres negras, que historicamente sustentam os pilares invisíveis do cuidado no país.
O principal ganho dessa proposta é reestruturar a forma como o cuidado é distribuído socialmente, retirando das mulheres – e especialmente das mulheres negras – a sobrecarga histórica de um trabalho não remunerado. Para se ter uma ideia, de acordo com dados da PNAD Contínua, esse trabalho é um dos principais fatores que mantêm a participação feminina na força de trabalho cerca de 20 pontos percentuais abaixo da dos homens. O novo marco legal propõe a universalização progressiva do direito ao cuidado, abrangendo crianças, adolescentes, pessoas idosas e com deficiência, e os próprios cuidadores, pagos ou não.
Basicamente, o plano se sustenta em cinco eixos: garantia de direitos para quem cuida e é cuidado; compatibilização entre trabalho, educação e responsabilidades familiares; promoção de trabalho decente para cuidadores; valorização cultural do cuidado com foco em gênero, raça e etnia; e governança intersetorial e gestão integrada. Para as mulheres negras, esses eixos representam a possibilidade concreta de acessar tempo, renda, educação e reconhecimento social.
O plano também estabelece os princípios fundamentais para sua implementação: dignidade, antirracismo, atenção às diversidades, participação social e formação continuada de profissionais. É um modelo inovador, que alinha o Brasil a tendências internacionais já adotadas por países como Uruguai, Colômbia, Argentina e Costa Rica. Esses países reconhecem o cuidado como infraestrutura social estratégica e investem em sistemas públicos robustos.
A implementação descentralizada do plano já está em andamento. Belém (PA) foi pioneira ao criar uma política local de cuidados com apoio da ONU Mulheres, oferecendo qualificação a trabalhadoras de cuidado e promovendo uma rede de ativistas. Outros municípios, como Belo Horizonte, também avançaram com a aprovação de leis locais. Em nível nacional, já existem nove iniciativas em curso que envolvem lavanderias comunitárias, cozinhas solidárias e cuidotecas.
Um dos avanços mais simbólicos foi o acordo firmado com a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), prevendo a qualificação de 900 mulheres em seis cidades e reconhecendo legalmente seus direitos trabalhistas e previdenciários por meio do Decreto 12.009/2024. Considerando que a maioria dessas profissionais é formada por mulheres negras, a medida tem impacto direto na autonomia econômica e na dignidade dessas trabalhadoras.
Outro impacto relevante será a geração de empregos. As estimativas são de que o plano possa criar mais de 10 milhões de vagas diretas e indiretas, majoritariamente ocupadas por mulheres. Para cada real investido, estima-se um retorno de R$ 1,80 a R$ 2,50 para a economia nacional. É uma resposta eficaz não apenas à desigualdade de gênero e raça, mas também ao estímulo do crescimento inclusivo e sustentável.
A institucionalização da agenda de cuidados, com base legal, financiamento garantido e participação social, representa uma ruptura com o modelo tradicional que responsabilizava exclusivamente as mulheres pelo cuidado. Ao “desfamiliarizar” essa tarefa, o Estado assume um novo papel que pode abrir caminho para uma sociedade mais justa, equitativa e com oportunidades reais para todas, em especial para as mulheres negras que sempre cuidaram do Brasil sem reconhecimento.
Geledés e os cuidados
Pioneiramente, Geledés- Instituto da Mulher Negra é uma organização que sempre se ateve à esta temática, justamente pelos desdobramentos da sobrecarga na vida das mulheres e meninas negras. Essa sobrecarga invisível de tarefas domésticas impede milhões de meninas e mulheres negras de acessar educação, empregos formais e posições de liderança. Ao redistribuir responsabilidades, as políticas de cuidado ampliam horizontes.
Um dos projetos relacionados aos cuidados é o projeto Enquanto Viver, Luto!, que estabelece formas de geração de renda e promove ações feministas solidárias em São Paulo. O projeto agrega mulheres que lutam separadamente, de acordo com os impactos de diferentes violências. São mães de jovens assassinados pela polícia, mulheres em situação de violência doméstica e sexual, profissionais do sexo, transexuais, travestis, lésbicas, estudantes universitárias, ativistas do movimento de mulheres negras, que trabalham conjuntamente pela construção do viver social e se reconhecem como mulheres que lutam, e não apenas como objeto de suas lutas.
Entre as iniciativas deste projeto está a incubadora de economia solidária “Fazemos” que nasceu com o propósito de promover uma alternativa de renda para suas integrantes, por meio da produção e comercialização de produtos artesanais, no enfrentamento à pandemia do Covid-19.
“O conceito de autocuidado foi alinhado aos nossos encontros e ações. A partir daí, as mulheres passaram a ressignificar seus enfrentamentos por justiça ao se cuidarem, o que teve um grande impacto em suas saúdes mentais, contribuindo para um maior equilíbrio em suas lutas cotidianas”, diz Nilza Iraci, coordenadora de Formação, Cuidado e Emancipação.
Nilza dá como exemplo a produção de sabonetes de ervas recebidos por elas em uma ação na Estação da Luz. “Algumas mulheres relataram que aquela tinha sido a primeira vez que tomavam banho com um sabonete especial e a primeira vez que ocupavam um tempo em suas vidas para tomar um banho relaxante”, disse ela.
Um dos resultados desse projeto apontado pela coordenadora de Geledés é que essas mulheres se perceberam como potências para a solidariedade, partilhando experiências apropriadas de novas informações, como cuidados íntimos, rotinas de beleza e ócio, e valorização de seus corpos como mulheres negras e LGBTQIA+.
Outro projeto relevante de Geledés, criado em 1999 e que impacta os cuidados de mulheres negras, é o de Promotoras Legais Populares (PLPs), conhecidas como “agentes multiplicadoras de cidadania”. São lideranças comunitárias que escutam, orientam, dão conselhos e auxiliam outras mulheres a ter acesso à justiça e aos serviços que devem ser procurados quando sofrem algum tipo de violação de seus direitos. Além do papel orientador, as PLPs compartilham informações e promovem o uso instrumental do Direito para efetivação dos seus próprios direitos.
Essas PLPs atuam diretamente no enfrentamento de violências cometidas contra mulheres, e também em situações de discriminações de gênero e raça. O trabalho acontece em comunidades, sindicatos, escolas, hospitais, postos de saúde. A ideia é que essas mulheres comecem a reivindicar seus direitos, fortalecendo suas lutas.
Os cursos proporcionados por Geledés para a formação de PLPs agregou mulheres de 17 a 65 anos de idade, de ocupações e profissões variadas, sendo elas donas de casa, professoras, advogadas, empregadas domésticas, estudantes, vendedoras, assistentes sociais, funcionárias públicas, entre outras. A maioria são mulheres negras, das camadas populares e de áreas periféricas da cidade de São Paulo e suas regiões, ou seja, pessoas que quase não tem acesso a informações sobre cidadania, além de serem as principais vítimas de violações dos direitos humanos, muitas vezes perpetradas por agentes do Estado.
Portanto, a visão do “Brasil que Cuida” vai de encontro ao que Geledés se propõe ao entender que o cuidado, especialmente em relação às mulheres negras, é um direito e propulsor do trabalho digno e motor de desenvolvimento econômico e social para essas populações.