Comércio de escravizados no Brasil, em ilustração de François Auguste Biard - Arquivo Nacional
Se dependesse da vontade política de alguns poucos, o Brasil teria abolido a escravidão oito anos antes da Lei Áurea, de 13 de maio de 1888 — quando de fato a extinção deste regime foi assinada.
Em 30 de agosto de 1880, há exatos 145 anos, o deputado Joaquim Nabuco (1849-1910) fez um discurso histórico na Câmara, que acabaria registrado nos anais sob o título “Urgência para um Projeto Abolindo a Escravidão”.
O diplomata e historiador, conhecido abolicionista, levou à tribuna argumentos para acabar com a escravidão no Brasil.
Ele se colocou como “um contra muitos”, mas pediu para que os “nobres deputados” o deixassem falar — seu discurso foi interrompido por 17 apartes (interrupção a quem discursa) de colegas, muitos com a intenção de silenciá-lo.
“Os chamados apartes que aparecem demonstram a insatisfação da Câmara em ter de lidar com esse assunto”, observa à BBC News Brasil o historiador Philippe Arthur dos Reis, professor na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).
“A maior parte [dos parlamentares] fica insatisfeita não só por ter de debater a questão, mas também de ter de ouvir Nabuco.”
“Para muitos, aquele era um caso que não precisava ser lidado”, acrescenta.
De forma geral, o discurso em si é um conjunto de reclamações de Nabuco sobre uma questão protocolar da casa.
Ele havia anteriormente pautado a urgência da discussão de uma legislação para extinguir o regime escravocrata no Império, mas obteve, como reação da imensa maioria dos parlamentares, a decisão de simplesmente não realizar sessão na data seguinte ao seu pedido.
Era uma artimanha. Pelo regulamento da Câmara, o assunto então voltava para o fim da fila — teria de ser pautado novamente.
“Havia toda uma tentativa de postergar a discussão sobre o fim do ‘elemento servil’, eufemismo pelo qual se tratava o tema”, afirma Reis.
Conhecido pela potente oratória, Nabuco encerrou sua fala acusando a resistência do governo, da Câmara dos Deputados e do Senado.
“A despeito da conspiração de todos os interesses, criados pelo trabalho do próprio escravo contra sua liberdade, uma ação mais poderosa, que é a atração do País pelas grandes forças morais do nosso século, há de fazer que um dia essa mesma lei diga aos que hoje sustentam a escravidão e que não querem que se lhe toque, com receio de que sem ela o País sucumba: não há mais escravos no Brasil!”, discursou.
Naquele agosto de 1880, apenas dois países ocidentais tinham regimes escravocratas vigentes: o Brasil e Cuba — que aboliria o modelo em 1886, deixando o Brasil como o último a fazer isso.
“Mas Cuba já vinha avançando no processo de abolição gradual”, aponta o historiador Victor Missiato, pesquisador no Instituto Mackenzie.
“Em termos representativos e quantitativos, o Brasil era, de longe, o único grande país escravocrata naquele momento.”
O historiador Vitor Soares, do podcast História em Meia Hora, lembra que a escravidão já havia sido abolida no Império Britânico em 1833, na França em 1848 e nos Estados Unidos em 1865.
Quase toda a América Latina tinha passado por isso.
“O Brasil sofria pressões externas, especialmente da Inglaterra, e o movimento abolicionista brasileiro dialogava com essa tradição. Nabuco viajou à Europa e recebeu apoio simbólico, mostrando que o abolicionismo era parte de uma rede internacional de causas humanitárias”, diz Soares.
Nabuco já era conhecido por sua atuação em prol do abolicionismo, com artigos frequentemente publicados em jornais e um ativismo público notável.
Em 7 de setembro de 1880, poucos dias depois de seu marcante discurso, ele criou a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, em parceria com o jornalista e farmacêutico José do Patrocínio (1853-1905) e o engenheiro André Rebouças (1838-1898).
“É importante ressaltar sempre que o Brasil estava, mesmo que a passos lentos, em direção ao fim da escravidão”, reconhece Soares.
“Muito por conta da ação de abolicionistas como o próprio Nabuco.”
O historiador resume o argumento usado pelo deputado: a escravidão era ilegal, já que a Constituição em vigor, de 1824, não previa o regime.
Nabuco defendia uma nova Constituição, com a abolição sendo “condição para o Brasil se tornar uma nação moderna e ‘membro útil da humanidade'”, explica Soares.
O deputado também se colocava contra o chamado “indenizismo”, a pressão por indenizações em caso de mudanças.
Nabuco dizia que, no caso do fim da escravidão a indenização aos senhores não caberia pois “não se indeniza propriedade ilegal”.
“Outro fundamento dele era uma perspectiva de abolição gradual, com previsão de cidadania, acesso à educação, propriedade e inserção social dos libertos”, diz o historiador.
Na Câmara, além de Nabuco, eram abolicionistas os deputados Marcolino Moura (1838-1908), José Bonifácio (1827-1888) e Sousa Dantas (1831-1894).
“Eram liberais e progressistas ou conservadores reformistas”, analisa o historiador.
“Do outro lado do palanque, estava a maioria dos deputados ligados à lavoura escravista, sobretudo do Vale do Paraíba e do Oeste paulista.”
O principal argumento defendido pela base parlamentar que lutava contra a abolição era o econômico.
Formada essencialmente por aristocratas ligados a grandes produtores rurais, a bancada entendia que haveria um colapso na produção se a mão de obra se tornasse livre e assalariada.
Além disso, os defensores do regime escravocrata afirmavam defender a propriedade privada e os “bens legítimos”, que seriam os escravizados.
A proposta de Nabuco não avançou.
O presidente do conselho de ministros (equivalente a um primeiro-ministro da época), José Antônio Saraiva (1823-1895), barrou o projeto e transformou a pauta em “questão de gabinete” — na prática, retirou a discussão da competência dos
Para especialistas, mesmo com o fracasso da tentativa de Nabuco em 1880, o discurso foi importante porque levou o debate para a política institucional, na Câmara — onde o assunto era “sempre escanteado”, segundo Philippe Arthur dos Reis.
O sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, acrescenta que o discurso foi “o ponto culminante do engajamento [de Nabuco] contra a escravidão”.
Para Ramirez, ao levar o tema para o debate político, Nabuco contribuiu para que houvesse no Brasil uma “maior conscientização” contra o regime escravocrata.
O historiador Vitor Soares acredita que 30 de agosto de 1880 foi o momento em que o Brasil chegou mais perto de acabar com a escravidão até então.
“Foi o primeiro grande esforço legislativo de abolição após a Lei do Ventre Livre, de 1871″, pontua ele à BBC News Brasil, referindo-se à lei que estabeleceu a liberdade para filhos de mulheres escravizadas nascidos dali em diante.
“Até então, só se discutia medidas parciais. A proposta representava o avanço mais ousado na direção da liberdade até aquele momento.”
Nabuco estava em seu terceiro e último mandato como deputado quando a Lei Áurea, que finalmente extinguiria a escravidão no país, foi promulgada.
Em fevereiro daquele ano, 1888, encontrou-se com o Papa Leão 13 (1810-1903) e cobrou dele apoio para a causa abolicionista — o sumo pontífice publicou em 5 de maio uma bula defendendo o fim do regime escravocrata.
Em 8 de maio de 1888, o projeto de lei da princesa Isabel foi apresentado à Câmara.
Nabuco solicitou dispensa das formalidades de praxe para que a proposta fosse apreciada de imediato.
Com acalorados debates e muitos argumentos do parlamentar, a lei foi aprovada pelos deputados em 10 de maio.
Quatro dias depois da Lei Áurea ser assinada por Isabel, Nabuco foi pessoalmente ao paço imperial para cumprimentá-la pelo ato histórico.