Este discurso moralista encontra guarida em dois setores importantes: o judiciário e a mídia. Dois setores que tem uma ação pública, poder (de coerção e de condenação “moral”) e nenhum controle social. O judiciário se organiza como uma ‘casta aristocrática”, pretensamente legitimada pela meritocracia, entretanto, submetida a tribunais superiores cujas indicações são feitas de forma política. A vitaliciedade e a total falta de controle social por parte da população dá a este poder um ar de “nobreza” que se expressa, por exemplo, em comportamentos autoritários de alguns dos seus integrantes.
A mídia brada pela defesa da liberdade de expressão, mas quase toda foi favorável aos golpes militares na América Latina no século passado. Com as dificuldades que vem sofrendo por conta da mudança do panorama de negócios neste setor, opta pela sua sobrevivência articulando-se com os segmentos mais conservadores. Constrói uma narrativa junto a opinião pública que a “grande contradição” social no continente é entre “políticos” (corruptos) e “cidadãos” (contribuintes). Fortalece, assim, com este discurso as teorias do Estado mínimo, da desregulamentação das relações de trabalho e outras, que favorecem as grandes corporações do capital.
Assim, temos neste período curto de vigência das democracias nos países da América Latina dois poderes que são imunes ao controle social e, portanto, puderam ficar ao largo de uma sociedade civil que cada vez mais foi incorporada com segmentos sociais historicamente excluídos e que aos poucos foi ganhando consciência e ampliando suas reinvidicações. Negras e negros, indígenas, mulheres, camponeses sem terra, trabalhadores, jovens da periferia foram se fortalecendo como novos atores políticos, construindo seus protagonismos midiáticos próprios pelas redes sociais e, assim, pressionando os poderes que tem mecanismos de controle social. Os cargos eletivos do poder executivo e legislativo passaram a ser contaminados com estas demandas. É isto e não outra coisa que incomodou e incomoda uma elite acostumada a se locupletar na Casa Grande e querer resolver as demandas da senzala na ótica de favores pontuais que não põe em risco os seus privilégios.
Não é a corrupção que está em jogo. É o reposicionamento das nações da América Latina no cenário geopolítico mundial feito, com variações, por vários destes governos que foram alvos de golpes ou tentativas de golpe. São as políticas de inclusão social que, mesmo limitadas e pontuais, trouxe ao cenário político a pauta do enfrentamento da desigualdade. É o cenário político que se construiu com a presença de negras e negros, indígenas, mulheres, trabalhadores, jovens da periferia que passaram a ampliar o escopo do debate público para além das necessidades do capital, embora estas continuam ainda hegemonizando as ações governamentais.
Enfim, o que está em jogo efetivamente, são as jovens democracias ainda não consolidadas nos países latino-americanos. Esta é a essência do “golpismo do século XXI”.
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