Imagens: Instituto Doné Eleonora
No ano de 2025, o Instituto Doné Eleonora, localizado em Hortolândia – SP, inspirou-se na COP30, que será sediada em nosso país, em ecologias afro-religiosas e na urgência de adiarmos a queda do céu para produzir o Festival Grito Cultural. O Festival é focado em culturas negras e conta com uma rica programação de rodas de diálogos, concurso Miss Beleza Negra, apresentações de breaking, graffiti, rodas de samba, shows e feira de economia solidária. Nesta edição, aconteceu do dia 20 a 26 de maio, com atividades abertas para o público, na sede do ponto de cultura e na própria rua.
Com uma longa história familiar de ativismo, a iyalorixá Eleonora, liderança do ilê asé omo Oyá Bagan e Odé Ibo, fundou em 2003 o Projeto Caminhos, que realizava diversas atividades de reconhecimento e valorização das culturas afro-brasileiras. No ano de 2009, o Projeto Caminhos se torna um Ponto de Cultura e as atividades passam a ser sistematizadas nos moldes de um instituto cultural. A iyalorixá foi a articuladora e proponente do Grito Cultural há mais de 20 anos atrás na cidade de Hortolândia, junto a suas irmãs, nora, filho, família consanguínea e de asé, tendo como objetivos principais a valorização das culturas e identidades negras e o enfrentamento ao racismo religioso. No ano de 2012, por meio de articulações e incidência política, a realização do Grito Cultural tornou-se política pública com orçamento assegurado via apoio da secretaria de cultura para ser realizado todos os anos. Mãe Eleonora foi a presidenta do Ponto de Cultura até o fim de sua vida e com seu falecimento, em 2021, o Ponto de Cultura Caminhos passa a ser “Instituto Doné Eleonora”, em homenagem à matriarca.
Além da vasta programação focada em artistas e grupos de culturas negras, o festival propõe que a comunidade local se engaje em temáticas relevantes na luta pela equidade e pelo fim de todas as formas de discriminação e desigualdades: ao decidir o tema do festival, pensa-se rodas de diálogos que antecedem o festival para introduzir o assunto para as pessoas se engajarem e se informarem melhor sobre quais serão as preocupações disputadas em cada edição. Em 2025, “Racismo ambiental e desenvolvimento sustentável” foi o tema oficial do Grito e para introduzir essas discussões na comunidade, foram feitas uma live e uma mesa, ambas com o título “Comunidades do futuro: racismo ambiental, emergência climática e ecologias para o amanhã”, com convidados e convidadas plurais, que atuam na secretaria municipal de meio ambiente e agenda de educação ambiental, liderança pastoral que tem trabalhado com ecologia integral e pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Outra atividade da programação de 2025 foi a exposição “Sementes da nossa ancestralidade: resistir é plantar o futuro”, que foi feita em parceria com Geledés – Instituto da Mulher Negra, e teve as crianças como protagonistas. As fotografias que compuseram a exposição são registros do projeto “Criança e natureza”, desenvolvido pelo Instituto Doné Eleonora, e registros da atividade “Infâncias de terreiro”, que foi desenvolvida por Geledés com as crianças do Ilê omo Oyá Bagan e Odé Ibo, em 2024. Além de fotografias, a exposição contou com paramentos de orixás como Ogum, Oxum, Iemanjá, Oxóssi e Ossaim, tapete sensorial, esteira de sementes e temperos secos diversos e uma seção dedicada a verduras, temperos frescos e plantas alimentícias não convencionais (PANCS). A ideia da exposição foi fazer aproximações entre o racismo, racismo religioso e racismo ambiental, tendo que a monocultura em larga escala do período colonial inaugurou tanto a predação da terra e de recursos naturais, quanto o extermínio de indígenas e outras comunidades tradicionais e a escravização de povos africanos e afrodescendentes, mas sem perder de vista que as crianças são a esperança para um futuro mais justo e a realização da ancestralidade.
Tem-se como objetivo dar continuidade a essas discussões ao longo do ano de 2025, ampliando o escopo da atuação e fazendo conexões com ativistas, pesquisadores e movimentos sociais de diversas localidades. Abaixo, o texto de abertura da exposição na íntegra:
“Dos sonhos que um dia nossas avós sonharam, somos a maior realização. Um dia seremos também avós e cabe a nós sonhar o futuro das sementes que virão.
Temos em vista a colonização como marco inaugural da exploração de mundos, terras, territórios e corpos. A adoção da monocultura em larga escala e a mineração como principais modelos produtivos e fonte de enriquecimento econômico, significou o início da devastação da vida, com derrubadas de florestas nativas, assassinato de centenas de milhares de povos indígenas e escravização da população africana. Por mais que o período escravista tenha acabado em 1888 e o Brasil seja república desde 1889, a monocultura em larga escala e a mineração ainda são as principais causas da crise climática no Brasil, com invasão de terras indígenas, contaminação de rios e solo, desmatamento e violação de direitos de comunidades tradicionais e exploração de trabalhadores negros em condições precárias que sustentam suas famílias com muito suor da árdua rotina no campo, enquanto seus patrões enchem os bolsos de dinheiro.
Neste sentido, o sistema que sustenta a exploração da terra tem sido o mesmo que perpetua desigualdades raciais e violação de direitos. Mas apesar de terem incansavelmente investido para o apagamento de nossa memória, da nossa história e da nossa ancestralidade, enterrar o corpo das nossas tataravós não foi o suficiente: elas sonharam grande e ousaram não temer. Em cada geração que deram à luz, semearam um lampejo de futuro. O racismo não nos matou pois não nos esquecemos do que nos foi dito, e hoje, sendo mães, acreditamos no amanhã em que nossos filhos sorriem em um mundo cheio de vida.
Com a leveza dos sorrisos das crianças, queremos causar provocações sobre o urgente momento em que estamos: quem vai reparar Oxum pelo rompimento das barragens de Brumadinho (MG) e Mariana (MG)? Quem vai reparar Nanã pelos metais pesados que estão contaminando os mangues próximos a territórios que estão sendo minerados? Quem repara Oxóssi e Ossaim pelas queimadas no Cerrado e na Amazônia? Quem repara Iemanjá pelos vazamentos de petróleo em seu ventre? Esta exposição tem como objetivo abrilhantar quem a visita com a esperança que as crianças provocam, mas sabendo que “Kòsí Èwé Kòsí Òrìsà” (sem folha não tem orixá) e sem orixá não existe vida, ecologias que respeitem as religiões de matriz africana, comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas são uma urgência para a crise climática pois sem nós, não há futuro: somos os povos que cantam e que dançam pedindo aos orixás que o fim do mundo seja adiado. Nossas crianças são os sonhos das nossas tataravós, são a esperança e a realização da nossa ancestralidade; é preciso sonhar com o amanhã e cuidar do mundo que habitamos, pois esta é a morada que orixá nos deu.”