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Desde que eu posso me lembrar, sempre fui acompanhado por uma profunda melancolia. Inconstante – às vezes onipotente, às vezes quase imperceptível – mas sempre presente. Depois de versar e tergiversar sobre essa fiel companheira com alguns ouvintes, nem sempre atentos, percebi o que era esse sentimento. A melancolia, no fundo, era enraizada num sentimento de não ser. Não caber. Não pertencer.
Fez sentido. Eu, de fato, nunca durei muito em grupos, o que explica os ouvintes desatentos não terem ficado pra continuação. Bom…de qualquer maneira, a insônia – uma nem tão fiel companheira, visitante esporádica – se dedicou um pouco mais. Numa dessas noites ela se deitou em minha cama, íntima como de costume, e me mostrou que essa melancolia era a minha kriptonita. Desde sempre me tornara fraco. Impotente. Cordial.
Nessa noite fui bombardeado de fatos, que apesar de me incomodarem, até o momento, sempre foram meio amorfos meio anônimos…mas que tornavam a melancolia quase crística. Poderosa. Insuportável.
Nessa noite algo se concretizou em mim. Uma mudança que começara há pouco mais de um ano, no Oscar de 2019, quando o Oga Mendonça me apresentara o conceito de Magical Negro, cunhado pelo Spike Lee. Naquela noite o grande destaque fora Green Book, por Nick Vallelonga. Eu ficara feliz com as vitórias do filme, mas nessa noite entendi que a felicidade fora, na verdade, identificação. Finalmente, percebi que, tal qual o personagem do Mahershala Ali no filme, eu não protagonizava minha estória. Os fatos, enfim, ganharam forma e nome.
Nessa noite tudo fez sentido. Eu entendi o porquê de eu nunca sair de casa usando chinelos. De eu ter medo da noite. De eu não me identificar com o vilão, nem com os mocinhos. De eu sempre me sentar no fundo do ônibus. De eu não gostar de shoppings. De eu sempre procurar reafirmação das minhas vitórias naqueles que sempre foram o absoluto contrário de mim. De o carinho sempre vir acompanhado de medo, sofrimento e autopunição, apesar de ter nascido numa família amorosa. De eu nunca falar sobre mim. De eu querer proteger o mundo que quem eu pudesse ser.
Nessa noite eu fui dominado por ódio. Ódio por perceber que quando nasci com a minha pele escura, enfiaram uma estaca no meu peito que por todos esses anos ardeu. Plantaram uma dor no meu coração e me fizeram acreditar que viver era assim. Me convenceram de que eu não poderia ser potente e amado. Que eu não deveria ser, caber ou pertencer.
Mas nessa noite eu também entendi o porquê dessa grande Primavera dos Sujeitos Negros. Do aquilombamento. Da tomada de poder. Da afetividade. Da proteção incondicional. Nessa noite eu também renasci. Renasci e me comprometi a me refazer. Renasci e encontrei nas mãos de Silvio Almeida, de Caio César, de Neuza Santos Souza, de James Baldwin, de Toni Morrison, de Emicida, de Cleiton Gonçalves, de Bell Hooks, de Abdias do Nascimento, referências muito melhores de mim mesmo. Renasci e decidi trazer quem eu puder junto de mim. Carregar minha História e entregar o poder nas mãos dos meus. Nessa noite eu descobri que, se eu cheguei até aqui, o Super sempre fui eu.