A gente, mulheres, quer acabar com o patriarcado e a opressão sobre a gente. Só que essa derrubada não virá do céu, só virá com luta. E no entanto é muito comum no feminismo evitar pressão sobre as mulheres para desconstruirem certos vícios e atitudes autodestrutivas para não ofendê-las com “culpabilização”.
por Keli Alexandre no A Margem do Feminismo
Eu particularmente estou de saco cheio de tudo ser TW entre feministas. Principalmente porque esse melindre é muito coisa de patricinha (moças classe média). Essas moças são muito fãs de uma inércia, comodismo, falta de problematização. Por isso o feminismo liberal é tão mainstream. Só que, para as que realmente se interessam pela queda do patriarcado, acho que certas coisas a gente pode fazer com muita eficácia para ajudar a enfraquecê-lo.
Uma delas é o empoderamento financeiro e político das mulheres. A gente não precisa esperar o planeta ficar comunista, ou o capitalismo ruir, para diminuirmos o poder dos homens sobre a gente. Mulheres se subjugam a homens primeiramente por pobreza. Depois pelo dever social, pelo fetiche, status. Mas a dependência financeira é um fator muito forte e derrubá-la ajuda a desconstruir muito da pseudo-dependência por um ser que pouca serventia real te tem. A outra coisa é desconstruir a feminilidade.
Feminilidade é um manto de opressão sobre a gente, um grilhão, uma etiqueta identificadora, ou insígnia, de violável e violentável. Feminilidade, fazendo um paralelo com certas opressões é o uniforme da empregada doméstica
Ou, em alguns casos, isso.
Tá, Keli, mas é difícil e culpabilizador você me cobrar que eu desconstrua a minha feminilidade, sou muito insegura
Acho que essa frase virá de primeira na cabeça das mulheres, inevitável. Mas eu realmente não estou me importando mais com as acusações de perseguidora, culpabilizadora e opressora de mulheres, porque todas elas são absurdas por si mesmas, quando não racistas. Nem rebato mais. Prefiro concluir meu ponto e auxiliar mulheres dispostas a me ouvir, já que ninguém é obrigada a me ler.
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Antes de defender sua feminilidade como algo que você precisa se apegar para se sentir bem, lembre-se que eu sou negra, e eu também preciso de cabelo liso e traços finos para me sentir bem. Na verdade, eu precisava disso para me sentir bem. Contudo, se o se sentir bem puder ser definido como algo concreto, definitivamente sentir-se bem é poder ser quem você é ao natural, se aceitar. Não só se aceitar, mas amar, valorizar essa diversidade da natureza. E é isso que sinto hoje pela minha negritude.
Mas o branqueamento, ou maquiagem da negritude, é algo que nós, negras, precisamos para sobrevivermos, para arrumarmos emprego, afetos, amigos, abertura em espaços sociais, inclusão. Então, nada foi fácil para mim, porém, defendo que meu bem-estar, o bem-estar de qualquer negra e mulher, está na liberdade dos padrões sádicos.
A feminilidade não é intrínseca a nós, fêmeas humanas, apesar do radical comum das duas palavras. Ela nos é imposta desde nosso nascimento quando a sociedade nos escolhe roupas e acessórios de semiótica de delicadeza e fragilidade. Tal como fazemos com os frangos para nosso consumo, mantemos eles em cativeiro, sem desenvolvimento de seus músculos, apenas para que sejam galinhas de carne macia, de fácil corte e mastigação, baixa resistência.
E feminilidade é isso, é o corte das nossas asas, o atrofiamento de nossos músculos, o subdesenvolvimento ou aniquilamento de nossas defesas naturais e nossa existência independente, insubordinada. É um processo longo e que dura a infância toda. As mulheres passam por isso. Beauvoir chama de mulher o próprio produto desse processo. Eu ainda prefiro chamar de mulher a fêmea humana, mas essas terminologias são relativas e não impedem a nossa discussão.
Mulherese e feministas são forçadas à feminilidade. Algumas resistem, mesmo se vendo héteros, como eu mesma resisti durante a infância. Mas, feminilidade é cerca de 80% do gênero, mas não o gênero todo. Ainda que resistamos a ela, continuamos presas à insígnia de “violável e violentável”, pelos homens. Não dá para fugir disso com ações individuais. Porém, dá para enfraquecer o patriarcado com ações conjuntas.
O único movimento que ataca a feminilidade é o feminismo radical e o movimento lésbico, porém, no feminismo isso é facultativo. Meu texto então é uma retórica em defesa da importância de se aderir à desconstrução pessoal da feminilidade, ainda que isso doa no começo.
Uma coisa boa é que mulheres negras não se encaixam bem no padrão de feminilidade. Feminilidade, curiosamente, é um padrão mais avançado para mulheres não-negras-africanas (carece de fontes). Não sei por quê. Mas, com isso, o padrão de feminilidade seria um apagamento da nossa negritude.
Por que desconstruir a feminilidade deve ser uma meta das mulheres contra o patriarcado e uma meta séria?
“Ai, ele deve ter me achado feia”. “Preciso sorrir para não ficar com a cara fechada, ou fazer aquela cara de ingênua”. Pensamentos assim norteiam as mentes das mulheres em concomitância com todas as outras questões, de práxis, para os seres humanos. Minto, pensamentos assim norteiam as mentes das mulheres em concomitância com muitas outras questões que só elas têm que ter, como maternidade e o medo de ser estuprada. Tudo isso nos atrasa e nos deixa em desvantagem. É uma escravidão nossa para a sociedade, pois além de já sermos exploradas de tantas outras formas, temos que fazer isso sendo os próprios adornos dos ambientes. É um tempo roubado, que nos impede de dedicarmos a nós mesmas, ao nosso lazer e à nossa formação intelectual e profissional.
Se você já entendeu que a feminilidade é uma arma do patriarcado contra você mesma, que facilita a dominação deles, você deve entender que desconstruir isso enquanto padrão é um grande passo para se derrubar o sistema de gênero e enfraquecer a supremacia masculina, assim como a representatividade de mulheres negras com a negritude assumida vem enfraquecendo os padrões caucasianos de beleza e tornando negras cada vez mais fortes e decididas, pela confiança da coletividade, a lutarem por espaço e voz nessa sociedade racista.
Tem inclusive muita gente que não é negra querendo ser negra, devido a essa representatividade que acaba, como efeito colateral, despertando fetichização da negritude. De forma semelhante, mulheres aderindo cada vez mais à desconstrução da feminilidade vão desconstruir o mito, que prejudica principalmente as mulheres, de que somos intrinsecamente femininas ou que somos feias ao natural, fazendo com que muitas mulheres se sintam confiantes a se livrarem das amarras da feminilidade, de seus grilhões, ficando livre.
Dá medo e insegurança no início, mas é justamente de pioneiras, heroínas, que precisamos para dar confiança às outras mulheres de que a feminilidade não só é dispensável como é perda de vida. Feminilidade é isso, é aquilo que precisamos desconstruir de forma viral para enfim nos amarmos e inspirarmos outras mulheres a se amarem também e enfraquecermos, juntas, a supremacia masculina e consequente misoginia.
E diminuirmos o fardo que nossas filhas e netas terão que ainda enfrentar daqui a vinte ou cinquenta anos.
A supremacia masculina tem alicerce na misoginia e a feminilidade é justamente a concretização da misoginia sobre cada uma de nós, mulheres.
Resistir a ela não deve ser facultativo, mas um dos primeiros passos das mulheres que já querem, mesmo, enfraquecer o patriarcado.
Eu também escrevo livros, e tenho dois já. Um de crônicas e outro de ficção. Deixe seu review, caso leia. E muito obrigada. Eu também escrevo livros, e tenho dois já. Um de crônicas e outro de ficção. Deixe seu review, caso leia. E muito obrigada. :)