Apesar do amor e da satisfação em ver uma filha crescer, ser mulher e mãe às vezes é uma tarefa difícil. E quando se cria uma menina negra, há um desafio extra: lidar com o racismo que ainda permeia as relações no Brasil desde a infância.
Não dá para negar que recentemente os cachos ganharam espaço na mídia e na internet, mas é fato também que crianças de cabelos crespos e pele escura ainda são vítimas de ofensa e bullying, como atestam os casos que vira e mexe são divulgados na imprensa e as mães ouvidas nesta reportagem.
“A relação da mulher negra com o cabelo é muito conturbada, as pessoas falam como se tivesse que dar um jeito, como se o cabelo fosse ruim”, conta Priscilla Santos da Silva, 32, carioca mãe de Aliya, de 7 anos, que tem cabelo 3C (veja sobre os tipos de cachos abaixo), com cachos estruturados e textura próxima do crespo.
Tanto que, mesmo crescendo em um lar que valoriza as madeixas afro, quando tinha 4 anos, Aliya chegou em casa um dia reclamando que não gostava mais do próprio cabelo. “Ela dizia que queria ter um igual ao da Elsa, do filme Frozen, que era liso e loiro. Aquilo me afetou profundamente”, relembra Priscilla.
Depois de muita conversa, a mãe descobriu o motivo do desejo: uma colega de escola tinha dito que a boneca de Aliya, por ser negra, era feia. “Eu segurei as lágrimas e expliquei que o cabelo dela era lindo, que ela era linda e que a amiguinha só não tinha o conhecimento que ela já tinha de que as pessoas eram diferentes e os dois cabelos eram bonitos”, resgata.
“Sei que não vou conseguir blindar minha filha das situações que ela passará por conta do racismo, mas me esforço para que ela sofra menos do que eu sofri”, continua Priscilla. O caminho não é fácil, mas com as vivências da própria infância e aprendizados conquistados ao longo da vida, ela e outras mulheres acabam aprendendo a lidar com situações como essa. E fazem de tudo para prestigiar os cachos e a beleza das suas pequenas.
Aliya no carnaval. (Priscilla Santos da Silva/Arquivo Pessoal)
Tipos de cabelos cacheados
Os cachos são classificados de acordo com suas características:
Tipo 2 – ondulado
2A: raiz lisa e ondas suaves, bem próximo do cabelo liso. 2B: um pouco mais definido do que o 2A, mas ainda com pouco volume. 2C: começa a formar ondas marcantes mais próximas da raiz e é mais cheio.
Tipo 3 – cacheados
3A: cachos abertos definidos da raiz às pontas e fios volumosos, costuma ficar com frizz em dias de chuva. 3B: cachos bem definidos e menores, como molinhas, que tendem a ficar ressecado nas pontas. 3C: muitos cachos pequeninos, que formam volume e fios mais grossos.
Tipo 4 – crespos ou afros
4A: cachos estreitos e fios grossos, formam um S quando esticados. 4B: os cachos têm formato de “z” e encolhem bastante de tamanho. 4C: os fios são grossos e o cachos quase imperceptíveis. Esse tipo de cabelo é mais seco naturalmente.
Ensinamentos do passado
Histórias como a de Aliya são uma constante para as mães de meninas negras. Mesmo assim, houve um tempo em que o cenário era ainda pior. “Quando eu era mais nova não se aceitava cabelo afro, nem eu me aceitava”, conta Carla Cavallieri, 33 anos, mãe de três meninas: Ágatha, de 11, Aisha, de 4, e Akillah, de 9 meses.
Henê, bobes, brow, pente quente, relaxamento afro… São inúmeras as técnicas agressivas utilizadas no passado – algumas até hoje – para alisar ou reduzir o volume dos fios. “Isso detonava o cabelo e acabava com a nossa autoestima. Com uns 12 anos, minha mãe foi obrigada a cortar o meu bem curto, pois estava muito danificado”, relembra Priscilla.
“Eu olho as fotos daquela época e não estou sorrindo em nenhuma, me odiava muito”, completa a mãe de Aliya, que há nove anos passou pela transição capilar. “Nossas mães não faziam por mal, mas foi imposto para elas culturalmente que o cabelo afro não era aceito”, explica Carla, que voltou ao seu cabelo natural – que ela nem lembrava mais como era – aos 26 anos de idade.
“São lembranças de muita dor e tristeza”, resume Priscilla. A experiência negativa de ontem virou aprendizado para hoje. E as coisas, felizmente, evoluíram. “Hoje eu posso criar minhas filhas com cabelo crespo. Elas vão desde cedo se amar, se reconhecer, não vão passar pelo mesmo processo que eu passei”, comemora Carla.
A mãe é, como sempre, espelho. “A relação da minha filha com o cabelo foi totalmente diferente, porque ela já nasceu com uma mãe com o cabelo natural”, concorda Priscilla. Mesmo assim, há altos e baixos.
“A família do pai da Ágatha é branca de cabelo liso, então ela queria muito ter o cabelo liso quando era menor. Mas não alisamos e hoje, com 11 anos, ela é tão militante como eu e já fez meninas da idade dela terem vontade de voltar ao cabelo natural”, relata Carla.
Carla Cavallieri no centro, a filha Ágatha à direita, Akillah com a chupeta, o marido Samuel e Aisha de rosa. (Carla Cavallieri/Arquivo Pessoal)
Texturas diferentes
Renata Germano, de 31 anos, tem a pele branca, os fios lisos e é casada com um homem negro. A filha, Rafaella, hoje com 6 anos e lindos cachos 3B na cabeça, nasceu em Moçambique, na África, enquanto os pais, missionários, trabalhavam lá.
“Tive dificuldades no início porque não sabia lidar com o cabelo dela, então pesquisei bastante”, conta a mãe, que, ao ter uma filha negra, passou também por um processo de descoberta. “A minha infância foi muito diferente da dela, pois o cabelo liso é aceito. Mas antes de ter a Rafaella eu não entendia isso”.
Há alguns anos, a pequena foi vítima de racismo na van escolar, relato compartilhado aqui no Bebê.com.br. “Ela normalmente é a única negra na escola e entre os amigos, então tento enaltecer a todo momento a negritude dela e inserir a temática negra em sua vida”, conta Renata. “Hoje ela tem muito orgulho do cabelo, da cor e, principalmente, de ser africana”, comemora.