Divulgação/FENATRAD
Em pleno 2025, o Brasil ainda convive com casos de trabalhadoras domésticas submetidas a trabalho escravo. Situações que, embora a lei as denomine como “condições análogas à escravidão”, a FENATRAD opta por nomeá-las explicitamente como trabalho escravo doméstico — uma escolha política que evidencia que, na prática, essas mulheres são tratadas como propriedade, privadas de direitos e de liberdade.
A categoria das trabalhadoras domésticas é composta por cerca de 7 milhões de mulheres em todo o Brasil, que desempenham diversas funções essenciais no cuidado e manutenção dos lares, indo muito além do estereótipo de apenas limpar e cozinhar. Entre as principais funções estão cozinheira, faxineira, cuidadora de crianças e idosos, jardineira, motorista, entre outras. Esse amplo leque de atividades mostra a importância social e econômica dessa categoria, fundamental para a manutenção de milhares de lares de famílias brasileiras.
De acordo com o Código Penal brasileiro (art. 149), o trabalho escravo caracteriza-se por práticas como jornada exaustiva, condições degradantes, trabalho forçado, restrição de liberdade, retenção de documentos, vigilância excessiva e endividamento com o empregador. Segundo dados oficiais da Inspeção do Trabalho, 127 trabalhadoras domésticas foram resgatadas de condições análogas à escravidão entre 2017 e 2023. Porém, levantamento interno da FENATRAD junto a seus sindicatos filiados aponta que o número real é muito maior: pelo menos 485 mulheres viveram, no mesmo período, situações enquadradas como trabalho escravo doméstico (FENATRAD, 2025, Módulo 3: Trabalho Decente para as Trabalhadoras Domésticas, Florianópolis: UFSC). Essa diferença revela o alto índice de subnotificação e as barreiras que dificultam denúncias e fiscalizações dentro dos lares.
As violações são diversas e graves: falta de alimentação no local de trabalho, abusos físicos, psicológicos e sexuais, retenção de documentos, confinamento forçado e trabalho infantil doméstico, que afeta majoritariamente meninas negras. Durante a pandemia, aumentaram os casos de encarceramento privado, quando trabalhadoras foram obrigadas a permanecer nas casas dos empregadores contra a própria vontade.
O caso de Sônia Maria de Jesus é emblemático: mulher negra, surda e analfabeta, que passou mais de 40 anos sem salário e segue em luta por reparação. Mesmo após o resgate formal, Sônia foi levada de volta ao convívio dos ex-empregadores, e aguarda decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre um pedido de Habeas Corpus. A demora perpetua violações já reconhecidas pela Inspeção do Trabalho e fere garantias legais de celeridade para pessoas com deficiência e vítimas de violência de gênero. Outras histórias de trabalho escravo doméstico incluem Ângela Maria da Silva, resgatada após três décadas em cárcere privado, e Valdirene Boaventura, que desde os 8 anos sofreu maus-tratos e violência enquanto trabalhava como doméstica, tendo sua vida transformada ao se aproximar do sindicato. Essas narrativas, que se somam a dezenas de outras registradas nos últimos anos, estarão no centro do 13º Congresso Nacional das Trabalhadoras Domésticas Luiza Batista, que tem como tema “Pela Equiparação e Respeito aos Direitos Conquistados”.
“Esse congresso dá continuidade à nossa luta por direitos garantidos. Com a Convenção 189 da OIT, nossa meta na FENATRAD é fazer essa lei valer e conquistar a equiparação dos nossos direitos. Nós vamos discutir 10 eixos essenciais para nosso trabalho e, depois, elaboraremos nosso plano de luta. A cada quatro anos renovamos nossa diretoria, avaliamos nossas ações e definimos metas. É um momento importante pra gente se fortalecer coletivamente”, destacou Cleide Pinto, coordenadora de Atas da FENATRAD e secretária-geral da Conlactraho.
O Congresso reunirá 250 lideranças de 13 estados para denunciar essas violações e reafirmar a luta por trabalho decente, igualdade de direitos e reparação histórica. Além da denúncia, o evento discutirá as deficiências da legislação no pós-resgate. Atualmente, trabalhadoras libertadas recebem apenas três meses de seguro-desemprego, sem garantias adequadas de moradia, aposentadoria, atendimento médico e psicológico. Essa lacuna, somada à falta de fiscalização efetiva em residências e à inatividade dos Comitês Estaduais para Erradicação do Trabalho Escravo (COETRAEs) em vários estados, favorece a reincidência dos abusos.
A programação terá destaque internacional no dia 20, com reunião com Tomoya Obokata, Relator Especial da Organização das Nações Unidas (ONU), sobre formas contemporâneas de escravidão, e no dia 22, com uma mesa sobre trabalho escravo doméstico que contará com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, representantes da FENATRAD, do Conselho Nacional de Acompanhamento e Erradicação do Trabalho Escravo (CONAETE) e de outras instituições.
O evento também será momento de celebrar conquistas históricas, como a promulgação, em maio de 2024, da Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Com o Decreto nº 12.009, de 1º de maio de 2024, o texto da convenção passou a integrar oficialmente a legislação brasileira, com status superior à Lei Complementar 150/2015, que completou 10 anos, reforçando a equiparação de direitos da categoria das trabalhadoras domésticas às demais.
Chirlene dos Santos, Secretária de Formação Sindical da FENATRAD, destaca que dar visibilidade ao trabalho doméstico é garantir não só os direitos, mas também o reconhecimento da categoria. “A gente tem direito trabalhista, social, direito de ir e vir. E precisa acabar com essa história de dizer que a gente é da família, porque isso é usado muitas vezes para explorar e até escravizar. Tem trabalhadora que é levada para a casa dos patrões, perde o contato com a própria família, perde seus direitos sociais, econômicos e até a liberdade. E, como no caso de Sônia, o mais revoltante é que muitas vezes quem faz isso são pessoas que deveriam estar do lado da lei, mas usam a lei para se beneficiar e prejudicar a trabalhadora”, afirma.
O 13º Congresso presta ainda uma homenagem especial à liderança histórica Luiza Batista Pereira, falecida em março de 2025. Mulher negra e trabalhadora doméstica desde os 9 anos, Luiza foi uma das principais vozes do movimento sindical da categoria, presidindo tanto a FENATRAD quanto o Conselho CNTD de 2016 a 2025. Seu legado, marcado pela afirmação de que “trabalhadora doméstica não é parte da família, é parte da classe trabalhadora”, será lembrado para sempre.