É provável que a abertura da Copa deste ano ou dos Jogos Olímpicos de 2016 siga o seguinte roteiro: a história do Brasil é recontada, com ênfase no momento no qual os Europeus chegam no continente americano, encontram os indígenas e depois trazem os africanos como escravos.
Então as raças negra, branca e indígena se unem para formar o grande país da diversidade cultural. O chamado “mito das três raças” é frequentemente usado para promover o País como um lugar onde crenças, cores e culturas convivem harmonicamente.
Só que na prática não é bem assim.
Não é bem assim porque, apesar de serem considerados iguais perante a lei, os negros sempre acabam no pior lado das estatísticas. De acordo com IBGE, o percentual de brancos em universidades em 2010 era de 62%. Entre os negros, cai para 28%. Outra pesquisa do instituto no mesmo ano revelou que negros têm 2,5% mais chances de serem mortos em crimes violentos do que os brancos. Mas não é preciso entrar na faculdade e nem ficar sob a mira de um revólver par ver o racismo. O preconceito está presente no dia a dia, e as três histórias a seguir ilustram isso.
Nesta semana, conheci um cara numa mesa de bar. Ele tem 19 anos, é negro, alto, não diria que é forte, mas tem um porte físico bem grande. É também incrivelmente simpático e um pouquinho nerd. Como ele mora num bairro vizinho ao meu, perguntei como ele voltaria para casa. “A pé”, ele disse. Eu me admirei: “Nossa, eu não tenho coragem de voltar a pé para casa à noite, vivo com medo de ser assaltada. Mas isso realmente não deve ser problema para você” (eu não passo dos 1,60m, e ele tem mais de 1,80m fácil). Ao que ele respondeu: “Bom, eu tenho um certo medo sim. Mas o pior nem é isso. O pior é quando as pessoas têm medo de mim”.
Então ele me contou os diversos episódios no qual as pessoas atravessavam a rua quando o viam vindo em sua direção. Ou quando apressam o passo quando ele se aproximava. “Ontem mesmo eu estava descendo a minha rua, ouvindo música no fone de ouvido, todo feliz, quando vi uma velhinha com uma criança mudarem de calçada para me evitar. Cara, isso é algo que estraga o seu dia. Já cheguei a chorar por coisas desse tipo”, desabafou.
Ainda nesta semana, um homem negro, de uns 40 anos, foi humilhado por seguranças de um supermercado numa cidade do Nordeste brasileiro. Os agentes o seguiram até o banheiro e o fizeram tirar a roupa para comprovar que não havia roubado nada. Ele tinha comprado duas garrafas de vinho, e ainda estava com a nota fiscal. Estudante de Direito, ele não pensou duas vezes. Chamou a polícia e registrou um boletim de ocorrência. O supermercado e os seguranças podem responder por crime de racismo. Indagada sobre o episódio, a empresa simplesmente negou que o fato tivesse acontecido.
Um amigo meu foi até um bar de Belo Horizonte comemorar o aniversário de um conhecido. O lugar estava tão cheio, que muitos convidados, inclusive ele, conversavam de pé ao redor da mesa. O que não era um grande problema, já que o papo estava animado e a noite agradável. Eis que um sujeito desconhecido o interpela, apressado: “Ei, me vê uma bebida!” Meu amigo olhou pra ele com cara de interrogação. “É, me vê uma bebida, pode ser uma cerveja, mas anda rápido. Já faz vinte minutos que eu pedi, e nada até agora”. Ele o havia confundido com o garçom. Adivinha a cor do meu amigo? Negra. E não era a primeira, nem a segunda vez que ele era tomado por um empregado subalterno.
Essas histórias, que acontecem todos os dias com milhares de crianças, jovens e adultos negros, são um retrato do quanto o Brasil ainda tem que avançar nesse quesito. Mas não adianta: enquanto todas as raças não tiverem as mesmas oportunidades, a cultura vai continuar sendo a mesma. E aí não adianta pintar o País como reino da democracia racial, enquanto a realidade das ruas desmentir o conto de fadas.
Larissa Veloso é jornalista freelancer e editora adjunta do portal elEconomistaAmerica Brasil. Escreve semanalmente neste espaço. Este artigo não reflete necessariamente as opiniões do El Economista América.