Projetos em Andamento

Uma vitória, muito trabalho por ser feito

O presidente Lula sancionou o Projeto de Lei nº 1.958/2021 em 3 de junho de 2025, ampliando a política de cotas no serviço público federal. Além do aumento no percentual, de 20% para 30% das vagas, a medida passa a incluir indígenas e quilombolas e abrange concursos para cargos efetivos e empregos públicos em órgãos da administração pública federal, autarquias, fundações públicas, empresas estatais e sociedades de economia mista, além de processos seletivos para contratações temporárias.

Essa ação do governo federal é, sem sombra de dúvidas, uma grande vitória dos movimentos sociais. Parabéns a força, a luta e a organização dos movimentos negros, do movimento das populações indigenas e das comunidades quilombolas. 

Neste artigo quero dialogar sobre o sancionamento do Projeto de Lei nº 1.958/2021 a partir dos resultados do estudo “Trabalho Digno e População Negra”, produzido, lançado em Brasília no último dia 21 de maio deste ano, e será lançada em São Paulo no mês de julho, dentro das ações pelo Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha. A publicação é fruto da análise de diversas pesquisas e relatórios que lançaram luz sobre a presença da população negra, especialmente mulheres negras, no mercado de trabalho brasileiro ao longo dos últimos cinco anos. Com base nessas fontes, foram mapeadas narrativas sobre o acesso a empregos dignos, identificando padrões, avanços e desafios que marcam a inserção da população negra no mercado de trabalho no país.

Foto: Geledés – Instituto da Mulher Negra

Nesse sentido, vou apresentar primeiro alguns pontos que a nova Lei dialoga e vai ao encontro dos resultados e recomendações apontadas pelo estudo “Trabalho Digno e População Negra”. Os resultados do estudo apontaram que o ângulo da visão dos relatórios e pesquisas estão direcionados (na maioria) apenas para a contínua recorrência da população negra em ocupações precárias e a forte incidência de desemprego antes e após a pandemia de Covid-19. A análise das imagens produzidas sobre o mercado de trabalho revelou também a predominância da mulher negra reiteradamente como trabalhadora doméstica e expôs como vínculos de trabalho independentes, como MEI, têm sido usados para precarizar as condições dessas trabalhadoras, a exemplo dos casos que essas trabalhadoras só descobrem que foram contratadas como MEI no ato da demissão e elas veem que seus direitos foram retirados sem consentimento.

O olhar direcionado exclusivamente para este ângulo limita o campo de visão das desigualdades raciais. Pois essa concentração de dados sobre postos de trabalho de baixa remuneração reforça um processo de invisibilização da presença de profissionais negros em áreas como medicina, direito, engenharia e outras profissões liberais limitando nossa compreensão da diversidade das experiências da população negra. Do mesmo modo, nos distancia de reflexões acerca das constatações sobre as desigualdades salariais entre pessoas negras e brancas em diferentes camadas do trabalho, que demonstram que a disparidade econômica transcende graus de formação e posições específicas, reforçando o caráter sistêmico do racismo no mercado de trabalho brasileiro  

  Considerando essa realidade, percebo que a nova lei caminha na direção de reconhecimento e enfrentamento da desigualdade como um problema sistêmico que se revela também na estrutura. Pois, ao ampliar a reserva de vagas de 20% para 30% e incluir povos indígenas e quilombolas, a lei reconhece que a exclusão racial no mercado de trabalho não é circunstancial nem individual — ela é sistematicamente reproduzida por estruturas históricas e institucionais. A medida atua diretamente nesse sistema, buscando frear a reprodução da desigualdade.

Ao abranger concursos públicos e seleções temporárias de diversos órgãos e empresas estatais, a lei cria oportunidades em áreas de alto prestígio e estabilidade, tradicionalmente ocupadas por pessoas brancas. Isso tem potencial para reconfigurar quem toma decisões e como as políticas públicas são pensadas e implementadas, pois a estrutura pública detém a prerrogativa de possibilitar acesso a cargos de prestígio e decisão. 

Isto demonstra que a nova lei vem ao encontro de uma das recomendações do estudo: I- Ampliação de Políticas Públicas de acesso aos postos de trabalho ligados às áreas liberais ainda no processo de transição da formação para o mercado de trabalho. 

Mais do que igualdade formal, a medida busca equidade real: reconhece que garantir os mesmos direitos para todos não basta, se as condições de partida são desiguais. As cotas funcionam como uma forma de “reparação institucional”, atuando para corrigir desvantagens históricas. Nesse sentido, não é mais possível pensar somente em políticas de acesso da população negra às universidades, aos cursos de graduação simplesmente. Há que se pensar estrategicamente também em como a gramática cultural das áreas interferem em todo o processo de formação, no acesso e permanência ao mercado de trabalho. 

Para além disso, olhar para as demais recomendações do estudo com a chave da nova Lei nos faz concluir que há muito por ser feito.  Vejamos a segunda recomendação: Fomento e ampliação de políticas públicas que visem a inserção de profissionais negras em vagas do serviço público, cargos e funções que historicamente há baixa incidência de mulheres negras. 

Essa recomendação se deu ao sistematizar resultados de pesquisas que, ao se deterem sobre o trabalho de mulheres negras, em síntese, afirmam: “[…] atividade tipicamente feminina e tipicamente negra – mais de 90% dos trabalhadores domésticos são mulheres e mais de 60% das mulheres que são empregadas domésticas são negras “ (IPEA, 2019). Ler essa mesma afirmação em tantos e tão variados relatórios parece uma música repetitiva que ao tempo que conta um fato verdadeiro nos impossibilita de pensar em outros campos de trabalho para este mesmo grupo.  

Reiteramos a necessidade de dados estatísticos e pesquisas que consigam problematizar em profundidade a participação das mulheres negras nas diversas camadas do mercado de trabalho brasileiro, que podem apontar caminhos significativos para o enfrentamento das barreiras que impedem a população negra de acessar trabalho digno.

 Leis como a nº 1.958/2021 podem influenciar ações capazes de contribuir para a produção de dados sobre diversidade racial no serviço público, gerando insumos para políticas mais eficazes e transparência sobre quem ocupa as posições na máquina pública — algo essencial em um sistema historicamente marcado pela opacidade e exclusão racial.

Diante desse cenário, o estudo “ Trabalho digno e população negra” reforça a necessidade de pesquisas que ampliem o olhar sobre o mercado de trabalho, evitando narrativas que restrinjam a população negra a ocupações precárias. A produção de dados mais diversificados sobre trabalhadores e trabalhadoras negras pode contribuir para uma nova compreensão da mobilidade social e para políticas públicas mais eficazes. Além disso, torna-se fundamental o aprofundamento das discussões sobre os limites entre trabalho formal e informal e os impactos das novas formas de contratação sobre a população negra.  

Afirmar que há “ muito por ser feito” refere-se observar a partir do Estudo que é preciso sim garantir e fortalecer políticas de acesso aos cargos públicos mas somente isto é pouco numa sociedade sistematicamente garantidora das desigualdades baseadas na raça. É preciso também  observar dentro das camadas do trabalho público federal quais são os nichos com maior remuneração e observar como as camadas da população negra dentro serviço público estão ou não acessando esses nichos.

 É preciso observar como o avançar na carreira pública pode ser permeado pelos mecanismos racistas que se alteram constantemente para ao ser obrigada (por força de lei) a absorver camadas da população negra faz movimentos de manutenção dessa camada numa “periferia” dentro da própria área.
Há muito trabalho para ser feito, mas a promulgação da nova lei sem dúvida é uma vitória. Pois a lei não resolve o racismo sistêmico, mas atua como um mecanismo institucional de enfrentamento, deslocando barreiras históricas e abrindo possibilidades de mudança real na estrutura do mercado de trabalho brasileiro.


Adriana Tolentino Sousa* – Doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP), especialista nos estudos das relações de raça, gênero e equidade

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