Tecendo Democracias e Territórios

Vida e luta de mulheres negras por território: o caminho da cidade exílio para a cidade utopia

Em entrevista para a coluna Tecendo Democracias e Territórios, a Yalorixá Odecidarewa, refletiu sobre racismo e suas tecnologias institucionais que produzem um efeito que atravessa diferentes comunidades negras, em diferentes períodos históricos no Brasil: a desterritorialização.

Mãe Zana conheceu bem de perto esta estratégia colonial. Há quase três anos o seu terreiro foi demolido pela Prefeitura de Carapicuíba, sob justificativa da canalização de um córrego para obras de saneamento básico.  O processo foi tão violento quanto sua justificativa, que insistiu em inscrever a existência do terreiro em oposição as necessidades ambientais e urbanísticas da população da cidade à época. 
Nesta conversa, mais do que tratar deste caso que ocorreu em 2022, Mãe Zana reflete sobre a importância de identificar uma ação coordenada, mais especificamente, institucionalizada, do Estado, de produzir expulsões e precarizações territoriais continuadas, sob diferentes justificativas, contra o mesmo grupo populacional: as comunidades e pessoas negras. 

“E que dignidade é essa, que diz que a favela venceu? Coisa nenhuma. Vai vencer quando ela deixar de ser favela no sentido da sua concepção estrutural – não da concepção ideológica do coletivo, da força cultural – mas estruturalmente quando a gente sair dessa condição e ter propriedade territorial, a gente pode dizer que a favela venceu.”

Esta conversa marca o encerramento da segunda edição da coluna Tecendo Democracias e Territórios. Orgulhosamente dividimos aqui, uma versão reduzida do que foi mais de uma hora de conversa com a liderança de axé, após recebermos uma mensagem da Mãe nos dizendo: “Não estou conseguindo escrever esse texto que vocês me pediram. Não é disso que quero falar.” Assim começou a nossa conversa. “Sobre o que a senhora gostaria de falar, Mãe Zana? O que a senhora acha que precisa ser dito, pensando esse tema da democracia e da territorialidade?” O que aconteceu em seguida, pode ser conferido a seguir.

Desejamos que essa leitura movimente e engaje, diferentes lideranças em toda parte do país para uma ação decolonial, consciente, revoltada com as demolições de sonhos, barracos, terreiros, ocupações que testemunhamos a cada dia.

Jessica Tavares: Mãe Zana, antes de tudo, a senhora poderia se apresentar, dizer o que a senhora acha importante das pessoas para te conhecerem?


Mãe Zana: Eu me chamo Odecidarewa. Esse é meu nome tradicional. E o nome colonizado é Zana Neire Oliveira de Jesus. Oliveira, muito provavelmente, é parte dos escravagistas que escravizaram minha família, consanguínea. Pois eu sou neta de africanos que vieram do Congo, da Nigéria, para o Brasil, na condição de escravizados. Desembarcaram na Bahia.

Por parte de mãe, meus avós desembarcaram na Bahia, meus bisavós também. E por parte de pai, no Rio de Janeiro, provavelmente no Cais do Valongo… da minha mãe, são pessoas que vieram da Nigéria, do Congo, e do meu pai, da Nigéria.

É o que eu sei das minhas raízes.  Mas eu sou mulher preta, periférica, ialorixá, mãe de três filhos lindos, três meninos, Danilo, David e Vinícius. E ativista de direitos humanos, direito de povos e comunidades tradicionais de matriz africana, na luta pelas mulheres negras, por saúde, enfim. Estou nesse processo de ativismo desde quando eu tive o entendimento de que eu era preta, mulher de periferia, de matriz africana, do povo de matriz africana.

Hoje sou uma mulher que vai fazer 50 anos. Nasci em Cubatão, a cidade mais poluída de São Paulo, fui para a Bahia ainda criança, e depois vim para São Paulo, para Carapicuíba, onde minha mãe plantou axé às margens do rio Cadaval. Depois que ela faleceu jovem, com 42 anos, assumi a tarefa de continuar a luta. E aí começa a nossa saga. Continua, na verdade. A saga pela possibilidade de existir.”


Jessica Tavares: Não sei se isso é algo que a senhora gostaria de comentar… A senhora poderia contar um pouco da história do seu terreiro em Carapicuíba, em como tudo isso começou?

Mãe Zana: Ultimamente, tenho dito que eu não quero falar da destruição, porque cada vez que eu falo eu me destruo um pouquinho também junto. Mas é importante a gente dizer de outra ótica, que não a da vitimização. Porque a vítima não fui só eu. Foi todo mundo, foi você, foram várias outras mulheres pretas e outros espaços pretos por todo o território nacional – porque cada vez que um de nós tomba ou algum elemento nosso é destituído, é arrancado ali de onde foi plantado, é uma faca no peito de todos nós.

A luta por aquele território não começou em 2022, a luta vem desde os anos 90. Na minha chegada em Carapicuíba, em 86, minha mãe já estava nesse processo de plantar o axé ali com meu avô, que já vinham de um processo de expulsão também, da Bahia para cá, meu avô foi desterritorializado, muito oprimido, porque naquela época, da ditadura, era a caça aos bruxos e ele era considerado o bruxo. Então ele teve que se deslocar da cidade de Canavieira ja nessa condição de fuga.

Ele foi para a cidade de São João do Panelinhas, distrito de Camacã, que era uma região cacaueira. Foi, ficou por ali e depois renasceu no axé. Com a chegada de minha mãe, na vida adulta, eles plantam o axé aqui em Carapicuíba. Ela faleceu, ele também e, na sequência, fico eu a responsável por dar continuidade a esse processo de resistência, ou de tentativa de resistência. 

Jessica Tavares: Como a senhora explicaria para pessoas que não fazem essa conexão facilmente, a relação entre as obras de intervenção / desenvolvimento urbano com o genocídio da população negra?

Mãe Zana:
Esses lugares escolhidos para tais obras são, na maioria, onde vivem pessoas negras, núcleos de resistência, aquilombamentos. E essas pessoas não são respeitadas. Se extermina uma convivência, uma relação social e com território que é fundamental.

No nosso caso, o terreiro chega nesse lugar, ainda tinha muito pouca gente ali, então o terreiro constituiu, literalmente, a comunidade, tanto que o terreiro era a base da comunidade, era a base política, era a base social, era a UBS, o hospital,  o centro de advocacia. As pessoas iam para o terreiro para ter segurança alimentar, acolhimento, para deixarem seus filhos para poder trabalhar. Então, o terreiro se transformou nessa base sólida, na relação interpessoal daquela comunidade. Minha mãe construiu isso, era a maior casa da comunidade. Tinha lugar para as crianças brincarem, tinha terreiro, literalmente, tinha o quintal. 

Voltando à questão da obra, em meados de , começa o burburinho na cidade, que aquela região que estávamos seria desapropriada e daria lugar a uma via. Que aquele rio ia ser tamponado dando lugar ao asfalto, e o rio era a subsistência do terreiro também. 

Com o avanço das obras, passamos a propor alternativas, sugerimos a criação do Centro de Referência da População Negra, reconhecido pelo município. A gente fazia inclusive uma das maiores ações de segurança alimentar e combate à fome da Região Oeste. Distribuímos toneladas de alimentos por meio do Fome Zero, realizamos projetos ambientais com reaproveitamento de garrafas PET, cuidávamos do território. Mostramos que não éramos inimigos do progresso. Queríamos fazer parte. Mas quando o governo mudou, fomos completamente ignorados.”

Jessica Tavares: De certa maneira, isso mobilizou a comunidade? Vocês articularam a luta pela permanência com outras demandas do território?

Mãe Zana:
Tudo isso era pela permanência, tudo isso era um processo de luta pelo território, mas sem descaracterizar a necessidade de desenvolvimento urbano que, na nossa ótica, não poderia ocorrer se as pessoas não tivessem intrinsecamente ligadas.

Mas também pela dignidade de toda aquela gente que lá estava, pela infância de cuidado coletivo, era realmente por todos e para todos ficarem bem. A gente nunca foi contra o saneamento, mas queríamos um urbanismo que respeitasse as pessoas, o rio e as águas. As unidades tradicionais e seus  terreiros, que lá estavam muito antes desse tal desenvolvimento chegar. Nossa atuação era desde o apoio ao combate à FOME à construção de legislações em prol da proteção e garantia de direitos coletivos com foco nas populações periféricas, negras. Posso dizer como destaque a mobilização que fizemos para aprovação do primeiro Plano  Municipal de desenvolvimento sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana do Brasil que virou a lei 3403/2016, com ações como distribuição de alimentos, e naquela época trazíamos 45/48 toneladas de alimentos do programa Fome Zero. As pessoas precisavam estar alimentadas, participando do processo, tanto do seu planejamento quanto da sua execução, a gente fazia reuniões, a gente conversava, fizemos campanha de conscientização ambiental, criamos projetos de conscientização ambiental  isso com toda uma articulação  tudo isso para fazer o governo entender que nós não estávamos ali enquanto inimigos, queríamos conversar, dialogar sobre o território, e que para aquele território, para nós, era necessário ter um olhar diferenciado, não só para as pessoas, mas para os elementos naturais que o compõem, que seria o rio, era a mata.

“A vegetação que circundava aquela região era necessária para a nossa reprodução cultural, nossa manutenção tradicional e, consequentemente, para nossa existência.”

Mas chegou a mudança de governo, em 2018, e os povos foram excluídos de diversas coisas, a começar pela exclusão da Coordenadoria de Igualdade Racial e a destituição do Conselho de Igualdade Racial da cidade. E aí ele retoma essa obra, retoma esse processo e dá andamento a essa obra. Quando a obra chega na rua do terreiro, a prefeitura manda um monte de gente, contrata várias pessoas temporárias e coloca essas assistentes sociais que, na verdade, eram estagiárias, nas imediações do terreiro. Elas passam a dizer para as pessoas: “olha, vocês têm 10 dias para desocuparem a casa de vocês, porque a gente vai passar com a obra e vamos demolir as casas”. Foi assim que chegou a notícia. Elas chegam para informar que as casas seriam demolidas, que a obra ia passar porque tinha prazo para entregar. 

Jessica Tavares: O que mudou para a senhora depois disso?

Mãe Zana: Com certeza, a ancestralidade trouxe essa orientação, porque viu que aquele formato de luta que a gente vinha trilhando até aquele dia não era o suficiente para esse novo mundo, esse novo modelo de escravização que a gente tem hoje, e aí tudo mudou depois disso, dessa percepção aguçada, apontada pelos ancestrais.

Hoje vejo o racismo como um processo sistêmico. Ele é contra o que você usa, ele é contra o som que você emite, porque se tiver um pouco de propriedade na tua voz, o racismo contra você vai ser muito mais implacável. Ele tem um poder hoje de destituir, desconfigurar não apenas a cor que você carrega, ele tem o poder de desconfigurar a sua personalidade preta.

Quando a gente fala que as pessoas estão se esbranquiçando, ninguém está se esbranquiçando não. As pessoas estão criando novas identidades em corpos pretos para tentar se manter viva. É outro processo. É por isso que abandonei esse processo de resistência. Ele estava me fazendo ser quem eu não era. Eu estava lutando com as armas deles, quando, na verdade, eles sabem, foram eles que criaram.

Aquela demolição me fez perceber que eu estava lutando com as armas deles. E quem molda a lei, desmolda. As leis que criamos não foram respeitadas, O prefeito me disse: ‘Suas leis de nada servem nesse momento’. E foi isso. Estou em exílio no meu próprio país.”

Eu desisti da resistência. Porque resistir passou a significar aguentar. Eu não quero mais aguentar. Quero existir. O racismo evoluiu, ele não persegue só a cor, mas a sua voz, sua presença, tudo que te identifica. A gente se adapta para sobreviver. E isso é adoecedor.

Jessica Tavares: A senhora construiu uma resistência com base em políticas públicas, leis, redes. E foi despejada apesar disso. A senhora acredita que essa desconexão entre o que é garantido na lei e o que se executa revela a face do racismo institucional?

Mãe Zana: Sim. Eles têm lugar. Nós não. Porque a gente precisa ter consciência de que você está aí na sua casa, mas você é uma mulher negra. Se não pagar aluguel, está fora. Mas a filha do fulano de tal, a filha do não sei de quem, pode ficar em qualquer lugar que ela determinar e quiser ficar. Então, esse povo tem lugar.  Nós não temos. 

Criam ilusões de pertencimento, a favela não venceu, ainda tem esgoto, violência, ausência de políticas. Que dignidade é essa que diz que a favela venceu? Coisa nenhuma. Vai vencer quando ela deixar de ser favela no sentido da sua concepção estrutural – não da concepção ideológica do coletivo, da força cultural – mas estruturalmente quando a gente sair dessa condição e ter propriedade territorial, a gente pode dizer que a favela venceu Colocam medidor de luz, mas não fazem saneamento. Isso não é programa social, é uma rastreabilidade fatal. A polícia entra armada na favela, no Morumbi, ela passa em silêncio. A minha filha com um fio de conta é alvo de olhares racistas. Então me diga: venceu aonde?”

Jéssica Tavares: Tudo está ligado por aquele território em que as pessoas moram e por quem são aquelas pessoas que ali moram. 


Mãe Zana: Tudo. As melhores frutas estão no sacolão do centro da cidade, no sacolãozinho perto da minha casa tem as piores, porque o dono do sacolão, coitado, ele tem dinheiro para comprar poucas coisas. Veja a questão da insegurança alimentar, da saúde pública. Quando a Covid chegou no mundo inteiro, onde mais morreu gente?Está tudo conectado com o território.

Jessica Tavares: A senhora denuncia que a mesma força que causou a demolição sob um discurso de legalidade se repete nas violências de Estado nas favelas e periferias. E o que a senhora acha que temos que fazer?

Mãe Zana:

A mesma força que derrubou meu terreiro, sob o discurso de legalidade e necessidade pública, é a que atua nas favelas com violência institucional constante. Basta observar: não existem UBSs em bairros ricos como os Jardins ou Alphaville. Elas são construídas nas periferias porque ali as pessoas vivem doentes, expostas ao descaso. Em vez de resolver as causas, como a falta de saneamento, preferem instalar unidades básicas para lidar com os efeitos.

Poderiam criar espaços de lazer, cultura, jardins, mas escolhem o abandono. Atividades culturais, como o rap ou o trap, são tratadas como ameaça — e a polícia responde com repressão, não com diálogo. Enquanto isso, jovens brancos fumam nas praças de bairros nobres sem serem incomodados. Já na favela, um jovem com uma moto pode ser espancado e morto sem motivo.

A violência é seletiva. É racismo estrutural. A favela não venceu. Minha filha com um fio de conta ainda é olhada com desprezo. O nosso povo ainda é criminalizado só por existir. Isso mostra que os territórios negros nunca foram, de fato, considerados parte legítima da cidade.

Jéssica Tavares: Falamos de muitas coisas, tem algo que não falamos que a senhora gostaria de falar?

Mãe Zana: Quando você me mandou as perguntas, você falou sobre utopia. E eu, inclusive, lembrei de uma frase do Galeano, em que ele fala assim: “a utopia está no horizonte. Me aproximo das pessoas e elas se afastam dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso, para que eu não deixe de caminhar”. É isso.


A cidade é uma utopia para mim. Ainda é. Porque quanto mais eu tento me colocar nesse lugar, mais longe ela fica de mim. E dos meus. E de nós. Todos nós, pretas, pretos, pretes. A vida nas cidades está tão distante, ainda é uma utopia para o povo preto.

Jéssica Tavares: E o que temos a fazer?

Mãe Zana:  A gente precisa construir a nossa cidade, falar com urbanistas, com médicas, estudantes, artistas… Por isso, eu tenho ido para a academia. Me chamam para ir fazer palestra na faculdade, eu vou. Para desconstruir essa narrativa de que você precisa empregar lá fora o que você aprendeu lá dentro da faculdade, quando, na verdade, temos que fazer outro movimento. A gente está entrando na universidade não para reproduzir o que eles ensinam, mas para aprender como eles nos matam — e transformar esse conhecimento em ferramentas para não morrer. Um dia, talvez, e assim construir a cidade na ótica da negritude, então, é sobre isso, um dia talvez, seja possível a cidade ser nossa também.


Por Jessica Tavares e Yalorixá Odecidarewa

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