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Em 2025, o Brasil marca duas datas emblemáticas na luta pelos direitos das mulheres: os 10 anos da promulgação da Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015) e os 19 anos da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). A primeira alterou o Código Penal para reconhecer o feminicídio como forma qualificada de homicídio e crime hediondo. Em outubro de 2024, essa tipificação foi reforçada pela Lei nº 14.994, que transformou o feminicídio em crime autônomo e a pena de reclusão de 12 a 30 anos para feminicidas aumentou para 20 a 40 anos de pena máxima. Já a Lei Maria da Penha consolidou a violência contra mulheres como violação dos direitos humanos.
Apesar desses avanços legislativos, o cenário da violência contra as mulheres no Brasil segue num crescente alarmante. O país ocupa a 5ª posição no ranking global de assassinatos de mulheres, concentrando aproximadamente 40% dos casos da América Latina. Essa realidade evidencia um ponto crítico: as políticas legislativas, embora fundamentais, têm falhado em promover medidas eficazes de prevenção.
Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 20251 reforçam essa constatação: em 2024, o Brasil registrou, ao menos, 87.545 casos de estupro.Uma média de 240 vítimas por dia ou dez casos por hora. Considerando que se trata de um crime historicamente subnotificado, os números reais provavelmente são ainda maiores.
Entre as vítimas da violência de gênero, as mulheres negras são desproporcionalmente afetadas. De acordo com dados do FBSP/IPEA (junho de 2024), entre 2012 e 2022, ao menos 48.289 mulheres foram assassinadas no país. Somente em 2024, 3.700 mulheres perderam a vida de forma violenta. No recorte específico do feminicídio, os dados são ainda mais reveladores: dos 1.492 casos registrados em 2024 – o maior número desde a vigência da Lei do Feminicídio – 63,6% das vítimas eram negras. Esses números evidenciam a interseção entre gênero e raça na produção da violência letal e indicam a urgência de políticas públicas com abordagem interseccional.
A importância da distinção entre homicídio e feminicídio
A distinção entre homicídio e feminicídio é fundamental. O feminicídio não é apenas o assassinato de uma mulher: é a expressão extrema das desigualdades de poder entre os gêneros. Seu reconhecimento como categoria jurídica e política possibilita a formulação de estratégias de enfrentamento mais adequadas à realidade das vítimas.
A nomeação do feminicídio cumpre um papel crucial na visibilização da lógica patriarcal que subordina os corpos qualificados como femininos. Entretanto, para além do gênero, é necessário reconhecer o racismo como um fator determinante nas mortes de mulheres negras. Como argumenta Flauzina2 (2008), essas mortes não podem ser compreendidas de forma isolada, mas sim como parte do genocídio da população negra, resultante de estruturas raciais de poder historicamente construídas.
A urgência de uma abordagem interseccional
Como defendi em minha dissertação de mestrado intitulada “Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres no Brasil: transversalidade, interseccionalidade e os desafios para a proteção integral de mulheres negras”, os desafios para a implementação efetiva dessas políticas tornam-se ainda mais complexos quando analisamos a realidade das mulheres negras. A garantia de proteção integral exige mais que boas intenções: requer compromisso com a interseccionalidade como uma práxis social.
Kimberlé Crenshaw3 destaca que a interseccionalidade permite compreender que as opressões vividas por mulheres negras não podem ser explicadas apenas pelo racismo ou pelo sexismo, mas pela combinação estrutural desses e outros fatores. Não basta, portanto, criar políticas para “mulheres” ou para “a população negra” de forma genérica; é essencial considerar as experiências situadas das mulheres negras.
Silvia Walby4 acrescenta que é preciso repensar a relação entre expertise e democracia, incorporando nas práticas públicas a vivência e o saber das mulheres negras. Em uma sociedade marcada por hierarquias raciais, a própria ideia de democracia precisa ser reconstruída com base na interseccionalidade, o que implica a presença dessas mulheres nos espaços de poder e decisão. Fazer política para mulheres negras não é suficiente; é necessário fazer política com elas.
O papel das instituições e a persistência do racismo estrutural
A ausência de uma práxis crítica interseccional contribui para manter barreiras institucionais e sociais que dificultam a ascensão plena das mulheres negras. Essa lacuna reforça desigualdades sistêmicas e impõe uma violência contínua, que se manifesta na precarização das condições de vida, na exclusão dos espaços de poder e na exposição desproporcional à violência.
Como mostrou Suelaine Carneiro5 , em pesquisa sobre os Centros de Referência da Mulher, em São Paulo, o racismo institucional afeta diretamente o atendimento às mulheres negras, revelando um despreparo da rede pública para lidar com as múltiplas dimensões das desigualdades.
Políticas públicas universais, ao desconsiderarem essas especificidades, acabam por reproduzir as desigualdades em vez de superá-las. A pluralidade de vozes na formulação e implementação de políticas públicas é, portanto, essencial para enfrentar os problemas estruturais da sociedade brasileira.
O Brasil viveu, nos últimos anos, um período de retrocesso democrático, marcado pela ascensão de forças conservadoras que atacam diretamente as pautas de gênero e raça. Movimentos por direitos humanos são criminalizados, políticas públicas desmontadas, e discursos de ódio se intensificaram nas redes sociais.
Esse cenário agravou ainda mais a violência simbólica e concreta contra mulheres negras, fragilizando ainda mais sua proteção. Documentos como a Convenção de Belém do Pará – que reconhece a violência contra a mulher como violação dos direitos humanos – continua sendo uma referência fundamental para enfrentar esse panorama.
É essencial ressaltar a importância de outros instrumentos internacionais, como o Plano de Ação de Durban (2001), que marcou a Conferência Mundial contra o Racismo. Nessa ocasião, o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade histórica pela escravidão e comprometeu-se a adotar políticas de enfrentamento ao racismo estrutural.
Outro documento crucial é a Recomendação Geral nº 5 do MESECVI6, da OEA, Adotado na XX Reunião do Comitê de Peritas do MESECVI, em novembro de 2023, em que trata da violência de gênero contra mulheres afrodescendentes. Reconhecendo as múltiplas formas de discriminação vividas por essas mulheres – agravadas por fatores como migração, deficiência, diversidade sexual ou trabalho doméstico – a recomendação propõe políticas específicas e combate a padrões socioculturais racistas.
Esse documento foi construído com a participação ativa da Rede de Mulheres Afro-latino-americanas, Afro-caribenhas e da Diáspora, demonstrando o protagonismo dessas mulheres na formulação de diretrizes políticas que colocam a interseccionalidade no centro da luta por justiça.
Por fim, embora as políticas legislativas, como a Lei do Feminicídio, tenham valor simbólico e jurídico, elas não são suficientes para frear a escalada da violência. O aumento da pena para feminicidas, agora podendo chegar até 40 anos de prisão, por si só, não inibe os crimes, nem salva vidas. Há casos de agressores que ameaçam juízes, promotores e familiares das vítimas dentro dos Fóruns, na sala de audiência.
O Direito Penal, conforme os princípios fundamentais do Estado de Direito, deve ser a “ultima ratio” – a última alternativa no combate aos crimes. O enfrentamento à violência exige, acima de tudo, estratégias de prevenção, políticas públicas eficazes e uma reconstrução democrática baseada na interseccionalidade.
A transformação do princípio interseccional em eixo estruturante das políticas públicas é, portanto, o único caminho possível para garantir, de forma real e duradoura, o direito das mulheres negras a uma vida livre de violência.
Maria Sylvia de Oliveira – Advogada; Diretora Executiva e Coordenadora da área de Gênero, Raça e Equidade de GELEDES-Instituto da Mulher Negra; Mestre em Ciências Humanas, pelo programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades – Diversitas – da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP.
(Foto: Natália Carneiro)