Maíra de Deus Brito
A ditadura sufocava o Brasil em meados da década de 1970, quando um grupo decidiu lutar contra a situação imposta pelo governo militar. Apolônio de Jesus e Antonio Carlos dos Santos, mais conhecido como Vovô do Ilê, juntaram um grupo de amigos, no bairro baiano da Liberdade, para enfrentar o racismo com o primeiro bloco afro do Brasil, Ilê Aiyê. Em entrevista ao Correio, Vovô do Ilê, atual diretor-presidente do bloco carnavalesco e um dos precursores da soul music no país, nos tempos do Black Bahia, fala da repressão sofrida pelo bloco durante o regime dos generais.
Quando e como surgiu o bloco afro Ilê Aiyê?
O Ilê foi criado em 1974, por mim e pelo falecido Apolônio (de Jesus). Nós queríamos combater o racismo no carnaval, aqui do bairro da Liberdade (o maior bairro negro da cidade). Antes, o negro só saía no carnaval carregando alegoria e resolvemos criar um bloco em que só negros participassem. Foi uma época muito forte da ditadura no Brasil. Qualquer tipo de movimentação e você já era tachado como comunista. E não foi diferente com a gente: fomos perseguidos pela polícia. O pessoal achava que queríamos tomar o poder. Momentos difíceis. Muita gente não quis sair no bloco, as famílias não deixavam com receio. Só conseguimos sair com 100 pessoas no primeiro ano. Não tínhamos instrumentos, nada. Até o terceiro ano do bloco desfilamos vigiados pela polícia.
Quais tipos de repressão o Ilê viveu na ditadura?
Esse último 20 de novembro foi um dia muito importante aqui em Salvador. Um grande jornal da Bahia fez um caderno especial sobre a consciência negra e Ilê Aiyê, Filhos de Gandhy e vários representantes do movimento negro foram lá e fizeram um desfile na redação. No passado, esse mesmo jornal foi o veículo que mais bateu na gente. Chamaram o Ilê de bloco racista, de nota destoante. Ele jogou muito duro conosco e, hoje, tem um caderno especial sobre a consciência negra. A imprensa foi muito perversa e dura com o Ilê e isso ficou marcado. Mas conseguimos superar isso. Depois surgiram outros blocos afros na Bahia, como Melô do Banzo, Olodum, Muzenza, e em Pernambuco, Maranhão e Rio de Janeiro.
Os integrantes foram perseguidos?
Não. Os nomes mais visados eram os dos diretores principais, eu e Apolônio. Quisemos colocar o nome do bloco como Poder Negro e fomos aconselhados a não fazer isso. De chegar às vias de fato nunca aconteceu não.
Quem aconselhou vocês a não colocar o nome de Poder Negro?
O presidente da federação dos clubes carnavalescos, saudoso Arquimedes Silva, era militar aposentado da Marinha e nos aconselhou. Na época, um amigo nosso da Polícia Federal também deu conselhos.
O que mudou no Ilê Aiyê depois da ditadura?
Na verdade, não mudou muito. A Bahia é uma terra muito racista. O Ilê se destacou, se mantém até hoje, 39 anos depois como uma teima que a fé sustenta. É uma teimosia nossa numa terra onde tudo é favorável para pessoas brancas. Patrocínio, dinheiro de governo é só para os artistas do axé.
Como o senhor vê o atual cenário do racismo no Brasil?
Não sei se está melhorando, mas a discussão está cada vez mais aberta. O Brasil se apresenta como um país de maioria negra, mas nas delegações só vê branco, parece até que é um país europeu. Nos cargos de comando ninguém tem coragem de colocar um negro. Mas ninguém é racista, né? Todo mundo assume que o país é racista, mas ninguém é. Nos cargos de 1º, 2º e 3º escalão não tem negro. Não se vê um partido indicar um negro para a Presidência, como foi com o Obama nos EUA. Alguma coisa precisa mudar. As colunas sociais só têm branco. Se as pessoas fossem escolhidas pela competência e não pela cor da pele, o Brasil teria outra cara.