Axé, a força que realiza

Não, não se trata aqui do gênero musical baiano, mas do poder, devir, energia vital dos orixás

Por Pai Rodney, da Carta Capital 

 

 

 

A velha mãe-de-santo explicava: “Axé é tudo, meu filho, e tudo é axé”. Eis o princípio da vida. Força que emana de tudo que é vivo. Poder, magia, dom. As mãos que abençoam têm axé. A palavra proferida tem axé. Os saberes e sabores do terreiro têm axé. Energia que se dá e se recebe, que se ganha e se perde, que se acumula e se dissipa. Axé é vida.

A palavra se popularizou, virou sinônimo de gênero musical baiano, mas bem antes disso estava presente na MPB, nas festas populares e carnavais, no cotidiano da gente da Bahia e do Brasil. Contudo, em verdade, o axé define a energia essencial que move todos os seres e todas as coisas que existem na natureza. No candomblé, é a força que realiza, o poder de criar e transformar as coisas. É justamente o que dá movimento à vida e, ao ser renovado, permite a permanência, a perpetuação de tudo.

Em termos práticos, além de ser a força sagrada de cada orixá, axé também designa o conjunto de objetos e materiais indispensáveis ao culto, bem como as pedras, árvores, comidas, ferramentas e adereços de cada divindade e de seus respectivos assentamentos. Essa força é revigorada por meio de rituais, oferendas e sacrifícios. Está no sangue, na seiva das folhas, nos pós das sementes e frutos.

Em qualquer candomblé, o axé é o conteúdo mais valioso, tanto que cada terreiro tem um “plantado”, ou seja, um conjunto de elementos sagrados enterrado aos pés de uma coluna central, ainda que simbólica, e representa a pedra fundamental, o alicerce e a base de tudo.

Deste fundamento emana a força que assegura a existência dinâmica da comunidade e a partir dele as possibilidades se concretizam. Uma vez plantado, esse axé passa a ser transmitido a tudo e a todos que compõem o terreiro. É força que se planta, cultiva e amplia, mas que também pode diminuir quando as obrigações rituais não são observadas ou quando as regras e interditos são transgredidos.

Gestos, olhares e palavras que abençoam o transmitem. Saudação para quem chega e para quem vai. Gratidão, súplica e desejo. Axé expressa alegria, regozijo, prazer. Dos alimentos sagrados, as partes ofertadas aos orixás são chamadas de axés. Sinônimo de sabedoria e dignidade, é a fonte da autoridade dos mais velhos, poder que se expressa nas figuras emblemáticas de pais e mães-de-santo, na nobreza das casas mais tradicionais e antigas.

Possuir axé significa ter respeito, origem, linhagem. É referência de tudo que permanece e se eterniza, é o que nos permite ser e estar neste mundo.

Aliás, a visão de mundo preservada no candomblé pressupõe uma interpretação muito própria das leis que regem a vida e o universo. Nas tradições negro-africanas, o pensamento é circular, bem distante da linearidade cartesiana que define as civilizações ocidentais.

A energia de todas as coisas (Foto: CCO)

Toda forma de transmissão de conhecimento dos terreiros, por mais que se tente negar, marca profundamente a cultura e o povo brasileiro. Na religiosidade africana reside um grande legado de valores e costumes preservados neste País, das palavras que modificaram a estrutura da língua portuguesa aos hábitos alimentares, posturas e jeitos de movimentar o corpo.

Por fim, axé é essência, fundamento, e de fato está na base de toda musicalidade da Bahia. Os tambores e agogôs dos afoxés, como os Filhos de Gandhy, Korin Efan e Badauê, e dos blocos afros, como o Ilê Aiyê, Araketu e Olodum, encontram sustentação rítmica nos toques sagrados dos orixás.

Isso prova que a relação entre os terreiros de candomblé e as manifestações da cultura popular baiana e afro-brasileira em geral (como maracatus e escolas de samba) vem de longa data e sempre mantiveram o respeito à religiosidade e à ancestralidade africana. Nem afoxés, nem maracatus, nem escolas de samba saem às ruas pra brincar o carnaval sem que sejam cumpridas as obrigações com os orixás.

Guardadas as devidas proporções, nessa mesma fonte sorveram Margareth Menezes, Daniela Mercury, Ivete Sangalo e tantos outros, popularizando ainda mais o termo axé e mostrando que no bojo da nossa cultura está o poder dos terreiros. Um poder que tudo realiza e tudo transforma: o axé.

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